Os domingos de manhã eram passados na varanda, a ver os barcos chegar. O grande estuário afunilava o tráfego marítimo que vinha do mar grande. Eram tempos de vivência dedicada absolutamente à subsistência. Tudo o que se fazia ía pouco além de satisfazer as necessidades básicas: comer, beber, dormir e manter a saúde possível daqueles tempos. Vaguear para conhecer o mundo – ainda em expansão – por mero prazer, ou passear para deleite dos olhos e da alma, eram coisas que não encaixavam numa forma de vida que pouco tinha para além da necessidade de sobrevivência.
Os barcos que chegavam eram sobretudo pequenos barcos de pesca – não iam para muito longe, mas as madrugadas passadas no frio e na dureza das ondas do mar alto eram lonjura bastante para quem ía e para quem ficava. Por vezes alguns não voltavam.
Era sempre especial quando voltava um daqueles barcos grandes, carregado de coisas que não havia cá. Nesses dias, a curiosidade vencia-me e levava-me sempre a sair da minha varanda e a correr para junto ao porto. As pessoas amontoavam-se, curiosas. Entre felizes e receosos a massa humana adensava-se num murmúrio, interrompido ocasionalmente por uma emocional saudação a alguém conhecido na amurada. Eu, com 11 anos, queria lá saber da saudade dos outros. Queria ver o que traziam. Felizmente tinha tamanho para furar o amontoado de pessoas por entre milhares de pernas e espreitar bem próximo o que traziam.
Cheguei à borda.
– João!! – ouço, vindo de alguém a descer da rampa de desembarque.
Não me recordo de quem seja mas fico receptivo na mesma.
– Há dois anos que não te via, pequenote… estás grande! A mãe? Também veio?
Confuso, deixo a história seguir. Não respondo. Chamo-me João, acertou no meu nome, mas tudo o resto só pode ser uma confusão.
– E a tua irmã? – é aqui que confirmo o engano.
O homem, que parece ter a idade do meu pai, embora muito mais bronzeado e com a barba longa, está-me a confundir de certeza. Eu não tenho irmãos. A minha mãe está em casa – muito provavelmente no quintal, a esta hora – e o meu pai trabalha numa quinta de uns senhores que vendem queijos.
– Desculpe, deve-me estar a confundir – digo.
O homem franze a testa e desliga rapidamente os olhos de mim, olhando por cima da minha cabeça. Os olhos varrem a multidão por minutos. E eu imóvel.
– Como é que eles são? – pergunto, na esperança de poder ajudar a encontrar alguém.
Embrulha algumas palavras por entre os dentes, que eu não consigo perceber e continua a pesquisa sobre as pessoas que começam entretanto a dispersar.
Nunca fui bom com as horas, mas devem ter passado duas ou três – é já tão pouca gente e o pobre homem senta-se ao meu lado numa das caixas de madeira.
– Se calhar estão em casa… – digo, não só para o consolar, mas porque acredito ser uma possibilidade.
– Não…
– Ou não souberam que o barco chegou…
Acabo por perceber que também não é isso, a cidade toda com família embarcada vem ver a chegada dos barcos e em pouco tempo toda a gente sabe do acontecimento.
– A chegada dos barcos é notícia que corre depressa, rapaz. Se a minha mulher e os meus dois filhos não estão aqui no momento da minha chegada, não pode querer dizer coisa boa.
(continua)