Crónica

A matança do porco

Era vulgar uma família oleirense possuir o seu porquinho e até havia quem possuísse uma porca para criação. 

O animal adquirido a “olho nu” na feira da Devesa, em março, achava-se na montra de um bardo improvisado feito de tábuas de madeira não fosse o animal fugir a sete pés. Depois de feito o negócio era levado a pé e à mão, atado numa das pernas traseiras por uma corda de sisal até ao curral do comprador. Pelo caminho havia um rito ancestral, o de chocalhar milho para o dito seguir adiante. Recordo que o porquinho recorria, quando esticava a corda, a frequentes grunhos, mas com arte e engenho do comprador sempre chegava a bom porto, para gáudio dos pequenotes.   

Previamente, já o curral tinha sido asseado do estrume dos seus anteriores. Agora estava reluzente, macio e fofo, com mato e fetos secos vindos de propósito das terras do termo. Encontrava-se apto a receber o novo morador que não estranhava a sua nova habitação.     

O animal utilizava o bardo, parte exterior da casa para poder tomar ares e ver as estrelas, e à noite repousava debaixo de telha, com dignidade – em paredes meias com o gado caprino e ovino – e tinha direito a um ninho feito de fetos. Aquando da última refeição do dia só lobrigávamos a sua tromba que espreitava de soslaio! 

Este animal era essencial para a sobrevivência dos nossos antepassados. No final do ano era realizada a sua matança com posterior armazenamento das carnes na salgadeira. Esta arca de madeira era o local onde a carne se conservava em sal. Ali estavam o lombo, o toucinho, as costelas, as pás, os presuntos, etc. Situava-se, geralmente, no rés-do-chão das casas, muitas vezes térreas, em local escuro e acima do solo para evitar que a humidade subisse até à arca e contaminasse todo o processo. As restantes partes do animal já antes tinham sido talhadas e migadas. Posteriormente eram confecionadas, pelas mulheres, com os temperos de alho, sal, colorau, cominhos, cravinho e vinho tinto. Eram convertidas em chouriças, colocadas no fumeiro e mais tarde transmutadas para alguma talha de azeite para durarem pelo longo ano vizinho. 

O reco alimentava-se de restos de comida, couves, nabos, abóboras sem esquecer o reforço da “vianda” mistura cozida de legumes com farinha de milho que potenciava, e de que maneira, o crescimento do animal. 

Paredes meias com o curral do porco existam os currais das cabras e das ovelhas, a capoeira das galinhas e dos patos. Havia farta bicharada que alimentava as muitas bocas da família e os homens e as mulheres “a dias” ou “a tornas”. 

A matança era o momento alto da vida familiar. Adivinhava-se um período de fartura de carne fresca. Numa 1.ª fase consumiam-se as miudezas: língua, coração, rins, bofe, fígado e entretinho. Numa 2.ª fase as carnes da salgadeira e as chouriças: as farinheiras, as de carne ou as de sangue que seriam curadas no fumeiro durante os longos invernos. 

Os familiares chegados estavam presentes no acontecimento. Primeiro havia de proceder à matança do porco. Basilar era a presença do matador, o Ti Mário da Maximina, morador ali na Fonte do Seixo. Sempre munido da sua faca própria, pessoal e intransmissível. De mão precisa, de uma só vez, ia diretamente ao coração do animal enquanto os homens seguravam o bicho que se encontrava deitado em cima de um enorme banco de madeira de 4 pernas. Até lá chegar haveria que fazer muita ginástica para capturar o bicho e estafar o dito. Porém, nunca ele deixava de espernear e de grunhir, mesmo em cima do local do passamento.  

A minha mãe aparava o sangue, que jorrava do golpe fatal para o alguidar de barro previamente dotado de sal e de vinagre. O movimento ondulante da colher de pau impedia a coagulação. 

O guincho do animal percorria o vale … ouvia-se no Dom Vicente e no Porto de Álvaro. 

Depois de finado os homens chamuscavam-no com carqueja seca que tinha vindo da Corgalta, previamente armazenada em local não húmido para arder convenientemente e sem embaraço. Mais tarde adveio a modernice do maçarico a gás, o que facilitou a tarefa. Posteriormente era raspado com facas afiadas e limpo com muita água, ficava branquinho e com a “barba feita”. 

Em braços era colocado no chambaril, rasgados os seus calcanhares, posto na vertical junto da trave. Ficava esticadinho. Iria ser retalhado e fragmentado pelo Ti Mário que com engenho e arte o fazia num ápice.  

Entretanto, as mulheres colocavam as rodilhas e os alguidares à cabeça, colocavam as vísceras numa masseira de madeira e caminhavam até ao Porto de Álvaro para lavar as tripas no ribeiro que ali abundantemente corria. 

Os homens serviam as primeiras febras temperadas com sal, logo ali assadas na lareira basta de brasido, acompanhadas com azeitonas, broa e vinho caseiro para alegria dos convivas.  

À noite vinham as fritadas de lombo, entretinho e fígado, que belo pitéu! 

O dia seguinte era a dia da partilha com os amigos mais “chegados” quer de um prato com pedaços de lombo, fígado, toucinho, tudo coberto com uma folha de couve ou de uma refeição em comunidade.   

As mulheres voltariam nos dias imediatos para encherem as tripas, já expurgadas das gorduras, raspadas e lavadas com vinagre ou limão, de modo a eliminar o seu cheiro natural. Era com a carne, condimentada, que ficara a maturar em alguidares de barro que se faziam os afamados enchidos que antes do seu consumo no tempo certo (pois haviam sempre algumas que eram desviadas para alguma pândega) iriam, ainda, ser penduradas ao fumeiro para gáudio de cada um de nós e para consumo nos tempos apropriados. 

Foi uma época de exultação em que a terra não se negava a encher: as arcas de cerais, as talhas do azeite e a salgadeira da carne de porco. Tudo coisas simples, como os sorrisos dos nossos ancestrais, dos amigos, a incessante chuva, a fria geada ou a branca neve. 

Numa outra vila vejo tudo o que vivi em Oleiros. Não está a mesma gente, mas ficaram as memórias e as estrelas que em noite de luar, ditosamente, encontram-se no céu! 

Autor

Gosta de sopa de massa com couves e feijão. Gosta, cada vez mais, de coisas simples e da mãe natureza.