Artigo também disponível em áudio, narrado pelo autor:
“A Minha aldeia era rodeada de olivais, com oliveiras antigas, de troncos enormes. Elas desapareceram. Senti-me como se me tivessem roubado a infância. Hectares e hectares de oliveiras desapareceram para dar lugar a culturas mais lucrativas. A aldeia não mudou tanto, foi a paisagem que mudou. E essa mudança radical na paisagem foi, para mim, uma espécie de golpe no coração (…) contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras, mas daquelas que, por muitos anos que vivam, serão sempre pequenas. Crescem mais depressa e as azeitonas colhem-se mais facilmente. O que não sei é onde se irão meter os lagartos.”
José Saramago, prémio Nobel da Literatura 1998
O Tejo, depois de calcorrear montes e rasgar vales, enlaça a borda de água na Barquinha. A fazer parte do belo quadro bucólico, a um tiro de espingarda, lobrigamos a monumental Quinta da Cardiga, na Golegã. Neste concelho, aqui ao lado, na terra de Carlos Relvas e do cavalo lusitano, o rio espalha a sua impetuosa riqueza pela planície até à quinta da Broa, na Azinhaga. No século passado, no tempo de Saramago, a lezíria, os mouchões e pauis acomodavam-se às inundações recorrentes que invadiam as terras da beira-rio, sinal de fertilidade e de fartura. Semearam-se os campos, cresceram as espigas e as vinhas, brotavam olivais. Em suma, nas zonas alagadiças, o rio era o grande impulsionador agrícola e mercantil nascendo em seu redor boas vias de comunicação e grande variedade de indústrias que influenciaram a paisagem e a remoção de muitos olivais.
No dia em que o escritor faria 100 anos, nasceu a 16 de novembro de 1922, membros do governo, familiares e amigos de Saramago deslocaram-se à Azinhaga para plantar a 100.ª oliveira que recebeu o nome de “Josefa”, em honra da avó, uma homenagem que visa compensar a dor pelo seu abate generalizado.
A Azinhaga foi circundada por enormes olivais que produziam o denominado “ouro da terra”, o azeite. Esta palavra provém do árabe “az-zait” que significa o sumo do fruto da oliveira. Este sumo é formado por água e óleo que os nossos antepassados, desde tempos imemoriais, extraiam por processos que foram sendo melhorados no sentido de se obter uma maior eficácia na separação do mosto oleoso do fruto em água e azeite. O azeite principiou por ser obtido dos frutos por esmagamento e adição de água, com recurso ao almofariz e ao pilão de pedra. Posteriormente, aperfeiçoou-se a habilidade da sua extração. O processo de moenda (trituração da azeitona, até formar uma pasta) na fase primitiva era manual. Mais tarde o processo de trituração passou a incorporar a tração animal, a força da água, do vento e da máquina.
A azeitona sempre teve um peso significativo na nossa balança comercial.
Importa recordar que a oliveira foi a árvore escolhida para ser plantada junto da casa dos Bicos, em Lisboa, onde repousam as cinzas do escritor que a ali se enlaçam com as raízes desta árvore tão mediterrânea. Nervos da sua terra …
Sendo a ideia da plantação das oliveiras de dois grandes amigos azinhaguenses, o Daniel Romão e o Victor Guia, aceitei com muita honra o convite até pelo simbolismo que o mesmo revestia, uma tentativa de gratificar Saramago daquela dor da extinção de árvores ancestrais cujas raízes, e nervos, o desenvolvimento de culturas modernas, e intensivas, apartaram dos sublimes campos da Azinhaga. No fundo iria assistir à glorificação de um símbolo da sabedoria e da resistência na sua terra natal! E como ele era sábio na escrita e nas suas convicções, que não partilhando, respeito!
Fui bem cedo, como convém, e aproveitei para um repasto de couves com feijão e bacalhau assado, em companhia dos meus amigos e da filha do escritor, Violante Saramago Matos, e da neta, Ana Matos. À tarde, na avenida Victor Guia, lobriguei as 100 oliveiras cada uma com o nome de uma personagem presente nos seus 43 livros que escreveu publicados em 65 países. É obra …
A ode à vida, ao compromisso político e à literatura sempre estiveram presentes no seu eterno desassossego!
No princípio era o verbo, era a palavra … Era esse começo do menino-homem que ali, na Azinhaga, a sua terra natal, estávamos a festejar.
Decerto outro menino, que não José, voltará a contemplar disformes oliveiras da União Europeia e troncos retorcidos por onde andarão escondidos os lagartos verdes!