Crónica

“das flores que sangram”

Ouvir artigo, narrado pela autora.

“das flores que sangram” peça escultórica da Joana Lopes

Voltamos a 8 de março, impressionante como o tempo passa, já escrevi na Resina, duas crónicas sobre este dia de todas, que deveria ser de todos!

E persisto na ideia de que este dia continua a merecer destaque, que tem todo o sentido. Volto a assinalar que não é dia das mulherzinhas, é Dia Internacional das Mulheres, assim com grandeza e a globalidade, mas com as subtilezas e a individualidade de cada uma e de todas. 

Não tenciono repetir o que já escrevi sobre este tema, continuo a pensar de forma idêntica, continuo a percepcionar um verdadeiro “atraso civilizacional no feminino”. Perdemos todos, com este atraso, não se enganem: a humanidade perde com este atraso.

Em antevésperas de mais uma eleição democrática, e no caminho do meio século a celebrar ABRIL (a escrita com letra maiúscula é, claramente intencional), o que ainda falta é um longo caminho para concretizar as filhas e as netas daquela madrugada, obrigada Sophia de Mello Breyner. Quando pensamos que há medidas que foram conquistadas e que deveriam ser direitos adquiridos como a despenalização da IVG, que tanta luta envolveu, eis que voltamos a escutar intenções de retrocesso. Importa lembrar aqui, Simone Veil e a sua luta para esta causa, sabendo que esta semana em França este direito passou a estar consagrado na Constituição. Porque se trata de um Direito Humano. Devemos estar todos atentos, é que nem adquiridos, nem conquistados estão alguns desses direitos, mas não é só quando se volta a falar da intenção de referendar o que já foi referendado, é ler e escutar, para saber que mesmo consagrado este direito, ele é diariamente obstaculizado e o seu acesso é dificultado. Garantias?! Poucas, e não estão consolidadas. A consolidação dos direitos não se faz apenas no momento das promulgações, nem com salvas de palmas no Plenário, faz-se no acesso pleno a quem deles precisa, no acompanhamento do dia-a-dia, faz-se quando e sempre que se garante a sua concretização.

Continuo a preocupar-me com o excesso de erotização das crianças, sobretudo das meninas, perguntas como: “-Já tens namorado na escola?” (preocupa-me e sempre contrariei, a mesma pergunta feita aos meninos, claro) Continuo a preocupar-me com a “objetificação” das meninas (e das mulheres, se não for nem desejada nem consciente), quando escuto miúdos a cantar algumas canções, que versam coisas como: “- …Quando Ela Bate Com a Bunda no Chão”, sem o ouvido atento dos adultos, sem uma conversa sobre o assunto, sem qualquer sentido de orientação para o significado destas palavras. Preocupo-me.

Continuamos a evidenciar números significativos de pobreza menstrual, o que quer dizer que há meninas e mulheres com dificuldade em aceder a produtos de higiene específicos para os seus períodos menstruais, estas situações além de muito vulnerabilizantes, acentuam ainda mais as desigualdades sociais e têm impactos que não são menosprezáveis na vida quotidiana destas mulheres, podendo ir ao ponto de refletirem absentismo escolar e/ou profissional.

Continuo preocupada com os elevados números de abusos, violência e crimes contra as mulheres, contra as meninas, com a violência no namoro, com o assédio sexual, com as desigualdades no acesso a cargos de direcção, a cargos políticos, com as desigualdades salariais, com o escasso associativismo feminino, com as horas suplementares de trabalho que as mulheres têm nos cuidados domésticos e familiares, com a invisibilidade das mulheres que limpam as nossas casas e os nossos escritórios, com o somatório de fragilidade que ainda significa ser mulher e não ser caucasiana, com as desigualdades no tempo para a auto-realização para o desenvolvimento pessoal, às vezes até mesmo para o auto-cuidado e para a saúde. Continuam a preocupar-me os números da mutilação genital feminina, sim, mesmo cá em Portugal. Continua a preocupar-me que não estejamos a educar os nossos filhos/filhas para, se assim, desejarem encontrar um par, (sendo que sou suficientemente liberal nos costumes, para aceitar qualquer figura geométrica que possa ser mais do que o somatório de duas partes) mas numa paridade real, ao contrário do que ainda acontece: que ainda sejam maioritariamente as mulheres a faltar ao trabalho para levar os miúdos ao médico, às vacinas, ou acompanhá-los quando estão doentes, a ir às reuniões da escola. Isto é perpetuar o ciclo das desigualdades. Que sejam as mulheres as mais mal pagas, as que engrossam primeiro e maior número as filas do desemprego em Portugal. 

Continua a preocupar-me a falta de exemplos no feminino: seja na História, na Arte, na Ciência, na Política, no Desporto, na Liderança, nas Áreas Tecnológicas e Cientificas, nas vertentes da vida em geral, continuamos sem saber o estamos a fazer para motivar as meninas a acreditarem em si, nos seus sonhos… 

Precisamos urgentemente de agradecer, de nos enaltecer, de nos amparamos umas às outras: Obrigada às MULHERES da minha vida! Obrigada Joana

Continua a valer a pena celebrar este dia, (se for) para transformar

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.