Artigo também disponível em áudio, narrado pelo autor:
Os nossos egrégios avós sempre mantiveram uma forte relação com a natureza. Ali radicava a sua subsistência e a essência da sua própria vida. Era dela que vinha a resina, o azeite, o vinho, a carne, os frutos e a água. A vida era feita em função do cultivo de plantas e das sementeiras do milho, do trigo, do centeio e da batata, das colheitas e dos ritos num calendário à roda do ano quase sempre inalterável, como imutável seria o seu percurso terreno de vida!
O gado predominante nos campos era o caprino, em razão da severidade do inverno, basto em colossais geadas e de frio intenso. Por isso os animais abrigavam-se no final da tarde nos currais, paredes meias com os humanos, tal como o porco, as aves e coelhos de capoeira, fontes essenciais para a sua sobrevivência. O gado ovino e bovino era raro e o existente resistia devido aos muitos lameiros presentes junto dos cursos de água que, a partir de outubro, davam quatro e mais cortes de erva que misturada com palha de milho, cevada e centeio, constituí-a farto e suculento sustento dos bichos.
Trabalhava-se de sol a sol, mas no final da semana eram parcos os recursos e os frutos do labor familiar. Como o dinheiro era um bem escasso recorria-se ao sistema ancestral de dias de troca evitando assim uma despesa acrescida. Comia-se o que o chão oferecia e no tempo de cada cultura. O peixe, a partir dos anos 60, vinha uma vez por semana e amiudadamente frequentava o viveiro dos mais pobres. A carne guardava-se na salgadeira e as chouriças eram penduradas no fumeiro, até serem imersas na talha de azeite, aguardando por melhores dias para saciar a fome. No princípio do séc. XX o pão era de milho (broa) e de centeio. Posteriormente, veio o pão trigo. O rito de acender o forno de lenha, as pinhas e a lenha furtadas e fugidas à GNR, ciosa da subtração formigueira daquele tempo, o fintar do pão com o crescente, a limpeza do carvão assente na base do forno de pedra com vassoura de giesta ou de pano escuro, a água quanto baste, despertavam sempre enorme nostalgia. Ah! e a cruz que era feita na massa! E a reza: “Deus te levede, E Deus te acrescente, E as alminhas, Que estejam no céu para sempre, Deus te acrescente, Que é para muita gente”!
As refeições eram feitas nas cozinhas à lareira e a lenha. Assim se aproveitava o calor para confecionar a comida na panela de ferro – como me lembro daquele sublime odor do vapor do caldo que entrava pelas narinas a dentro e do brasido que aquecia o corpo e da alma – Ah! e as aquelas histórias de suspense, de enigma e de mistério? Saudades …
Os dias eram feitos de uma correria desumanizada como se o destino fosse aquele. Era um fado de suor e privação, só com um singelo fôlego nos tempos persistentes invernosos, na noite adiantada ou em dia de festa ou dia santo.
A falta de água potável era uma constante. Lembro-me de ir à fonte com uma bilha, ao Dom Vicente, ao poço do Ti Salvador que, naquele tempo, tinha uma oliveira antiga mais velha que a “Sé de Braga”. Diziam que era dos tempos dos romanos, mas eu, ainda catraio, não tinha a noção de antiguidade, quer dizer, importante, importante, era a dita ser boa e fresca. Depois de transportada era colocada ao canto da cozinha como se de um tesouro se tratasse. Era uma riqueza efémera pois desaparecia num ápice, mas em breve, como convinha, o puro líquido era restabelecido.
A roupa de casa, tal como as tripas da matança do porco, lavava-se nos ribeiros que corriam por todos os lados pois eram tempos de águas mil. Certo era que no tempo quente lá íamos com o alguidar de roupa e vestes à Ribeira Grande onde se tomava banho compulsivo que isso de banho em casa era um luxo e um bem escasso.
Todo este vaivém rural e doméstico era duríssimo para com os nossos ascendentes. Não admira que à noite, aquando da deita, os seus corpos caíssem nas camas de palha de milho e de lençóis alvos em profunda paz.
Mas a vida teimou em não querer sorrir a alguns dos nossos conterrâneos e a “abalada”, pelo relato de algumas almas que vinham do Ultramar, de Lisboa e de França, apareceu como uma alternativa ou novel desafio. E muitos partiram, e refizeram-se, mas outros ficaram, e transfiguraram-se!
Importante será perceber que, parafraseando o Cardeal D. José Tolentino Mendonça, é impossível viver sem os outros pois a ausência daqueles que amamos continuará a doer-nos até ao fim. E continuaremos a trabalhar interiormente esse vazio, que depois se descobre não ser só vazio, mas também excedência, também companhia, pois a memória dos nossos mortos é uma pátria sagrada que não nos larga. A ela vamos buscar a força, o entendimento de nós mesmos, a palavra que nos disseram, o gesto com que nos surpreenderam, o rastro do coração que neles bateu tão forte e do qual nos sentimos para sempre herdeiros.