Crónica

Do lugar das memórias felizes

O-L-E-I-R-O-S representa para mim a memória dos afetos, é aí que estão parte das minhas memórias felizes, é para aí que corro sempre que posso, sempre que preciso de as desatar. As memórias às vezes atam-se-me na rotina dos dias, e é aí que elas se soltam, é aí que volto a sentir o que senti quando vivi pela primeira vez o que hoje são as minhas memórias dos afetos.

Era aí que passávamos as férias grandes, era para aí que corríamos, eu e o meu irmão, arrastavámos a nossa avó, que ia só connosco, os pais e o avô vinham ao fim de semana. Era aí que revíamos os amigos, com quem ao longo do ano nos correspondíamos, em cartas que teimavam em chegar sempre a desoras, as novidades eram paradoxalmente imutáveis. Ainda hoje guardo umas duas caixas de cartas trocadas com amigos e amigas. Era daí que regressavámos orgulhosamente a falar e a escrever com sotaque e trejeitos uleirenses (auga (água), pitas (galinhas), ougar (regar) e outras. Chegávamos e, no dia seguinte, os nossos amigos já nos esperavam para brincadeiras, que eram aventuras, o banco da bicicleta ficava desenhado na sensibilidade dos nos nossos rabos de miúdos durante os três primeiros dias, depois, depois a habituação fazia o resto. Eram horas pelos caminhos que levavam da Vila aos Açudes da Ribeira de águas geladas, e por esses caminhos aconteciam coisas, muitas coisas, comíamos fruta das árvores, umas vezes ainda verde, outras já madura, dependia da sorte e da nossa altura para chegar às que o sol já tinha beijado. Escondíamo-nos no meio dos campos de milho para surpreender os que pedalavam mais devagar, isto implicava esconder também as bicicletas, e levantar os milhos, para não deixar pistas derrubadas que nos incriminariam logo. Algumas vezes caíamos, outras furávamos os pneus, que remendávamos logo ali, porque tínhamos um amigo com uma pequena bolsa com remendos e um tubo de cola, a bomba de ar andava encaixada ao longo do quadro, portanto tínhamos tudo. Chegados ao Açude, que era normalmente o da Lameira, bicicletas no chão, mochilas atiradas, nem sempre tínhamos tempo de nos despir, às vezes calhava irmos, assim, empurrados por um dos nossos, eram os chapões melhores do mundo, se não lhe mudaram o fundo talvez ainda saiba quantas braçadas é preciso dar para pôr os pés naquela pedra que não escorregava tanto e que nos permitia ter os pés assentes, e respirar. Os mais atrevidos subiam ao muro de pedra do Açude e exibiam os melhores mergulhos com a pontaria afinada para caírem no centro do poço, a parte mais funda. E por ali ficávamos até a pele se enrugar e os lábios ficarem roxos, o sol muitas vezes escondia-se por trás das pernadas das árvores e nem chegava a aquecer a água, havia calhandras e alfaiates, as primeiras esgueiravam-se por entre as pedras os segundos deslizavam com leveza de bailarinas na superfície da água.

No regresso passávamos na Fonte das Freiras, para beber água, tínhamos que fugir das vespas que faziam ninho por ali, lembro-me de ficar hipnotizada com o musgo que se agarrava às duas lajes e que dançava conforme a água caía, claro que além de beber água molhávamo-nos uns aos outros, mas como para regressar ainda tínhamos que pedalar, ainda nos faltava a subida da Quelha, naquela altura ninguém ficava para trás e não valia desmontar da bicicleta, subíamos de pé normalmente (abençoadas pernas e glúteos que tínhamos), ofegantes, lá chegávamos  em triunfo à Praça da República, dali, cada um seguia o seu caminho até casa, depois do jantar voltaríamos a ver-nos no Jardim.

Claro que não podíamos falhar os horários que a avó marcava, senão à noite, já não saíamos…e isso era irremediável, porque eram as escondidas, o trepar às árvores, e o borralho finíssimo do chão, o borralho era dourado, que ainda mastigávamos quando já escovávamos os dentes, prontos para dormir. O Jardim não era como o conhecemos hoje, era de terra batida, depois veio a relva e os passeios demarcados com os ferrinhos em arco branco, e alcatrão vermelho escuro, teve uma estátua de um anjo barroco (ou menino de cabelos encaracolados) que fazia xixi em repuxo, e que nos servia de segunda rotunda para as corridas noturnas de bicicleta, porque a primeira era o Coreto. Às vezes trazíamos girinos da Ribeira em sacos de plástico, que depois tentávamos que vivessem ali, no lago do Coreto. A vida era simples e tão descomplicada naqueles dias.

Quando o sino da Igreja badalava onze vezes era hora de voltar para casa, entretanto às varandas da Concol, já algumas mães tinham vindo chamar pelos filhos, porque já eram horas.
Éramos felizes e sabíamos!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.