Crónica

Chuva de Estrelas no Moradal

Numa qualquer noite, de um insignificante agosto, éramos um bando de miúdos, já não tão miúdos assim, entediados, sei que não era nem fim de semana, nem entrada ou saída de um, estávamos “entalados” entre as festas, depois do jantar saímos, encontrámo-nos no sitio do costume, que naqueles tempos era um café na Praça da República, com um pequeno terraço virado às traseiras, tomavam-se cafés, fumava-se e bebiam-se cervejas, havia conversas que normalmente versavam sobre o desporto da bola esférica, alternando com os novos habitantes estivais que apareciam na terra e que despertavam a curiosidade dos locais, para se explicarem uns aos outros a proveniência dos recém chegados, alguém começava pelos píncaros da genealogia local, sobre quem eram os avós, passando pelos pais, e terminando no nome do lugarejo de morada de família, eu perdia-me logo nos galhos cimeiros da árvore familiar. Depois vinham as coleções de adjetivos que qualificavam os tais novos membros, que se calhavam a ser miúdas, era coisa para demorar muitas cervejas

E por ali estávamos sem grande norte e sem grandes projetos, a noite escorria-nos por entre os dedos assim como as conversas, o dia já não era o mesmo, até que alguém disse que havia uma chuva de estrelas. E foi um instante breve até nos organizarmos com os carros e os condutores disponíveis, para subir à Serra do Moradal com a desculpa de ver a tal chuva. Levamos mantimentos, já tínhamos experiência de vida suficiente para saber que à noite também se consomem calorias e que a hidratação é fundamental, carregaram-se os porta bagagens dos carros, agrupamo-nos conforme os elencos amorosos do momento e lá fomos, em peregrinação automóvel noturna, uns atrás dos outros, como os meninos que seguram o bibe do menino da frente. Chegados, saímos cada qual com o seu casaco, havia mantas, e cestos com comida.

A noite estava escura, a lua havia de ser nova ou perto disso, só as estrelas e uma ou outra lanterna que os mais prevenidos tinham, nos ajudavam a adivinhar o caminho por entre as carquejas baixas e as urzes que nasciam no meio das rochas. Andamos um bom bocado por entre o equilíbrio difícil de um carreiro estreito, até encontrarmos um local onde desenrolamos as mantas e nos sentamos. O vento soprava fraco, ondulava apenas as franjas dos cabelos, alguém tinha levado um rádio a pilhas com umas cassetes, a música tocava, mas não agradava a todos, as cervejas escorregavam de mão em mão, até chegar aos que estavam mais afastados. Uma das miúdas do grupo pediu que nos calássemos todos, que escutássemos o barulho do vento a restolhar nas ervas baixas, entretanto já alguns de nós nos tínhamos deitado, para uma visão mais panorâmica do céu, que estava esplendoroso, coberto de estrelas, aqui e ali algumas soltavam-se e caiam deixando atrás de si um rasto luminoso, contavam-se os segundos que demoravam a desmoronar-se, havia sempre alguém que via mais, e cujas estrelas eram mais luminosas e que jurava a pés juntos que tinham sido mais de trinta segundos a vê-la cair.

Um dos amigos contou, a propósito daquele lugar a Lenda de uma Moura Encantada que por ali havia de estar a guardar algum tesouro, desde há muitos séculos, que dormiria sobre aquelas rochas mas que algum dia despertaria. Fizeram-se apostas, chamou-se pela Moura, queriam acordá-la do seu longo sono, queriam mais, queriam desencantá-la, desassossegaram-se muitos, um pequeno grupo saiu mesmo à sua procura, subiram mais umas rochas, gritavam cada vez mais alto pela dita Moura, amparavam-se uns aos outros, felizmente que naquele momento eu não tinha noção do terreno, dos precipícios que se inclinavam do topos dessas rochas, em direção aos vales vizinhos, ainda bem.

Cansados de chamar pela Moura, que teimava em não acordar, terminada a grade de cerveja e as iguarias, começaram a agigantar-se para nos irmos embora, que as estrelas já haviam de ter chovido todas! Alguém sugeriu levantar arraiais e voltar à vila. Que já bastava de contemplação, assim pensaram, melhor fizeram, começaram a arrebanhar as mantas, a grade e os despojos.

Eu continuava deitada, de nariz no ar, tinha a cabeça apoiada nas suas pernas, continuava a ver estrelas cadentes, estávamos em silêncio, havia vários minutos que não trocávamos uma única palavra, aquele silêncio entre nós não era constrangedor, ele baixou-se e perguntou-me com a voz rouca: – Queres ir já embora? Ainda não vimos as estrelas todas, falta a maior… não respondi, nem percebi o ele que queria dizer, deixei-me apenas ficar.

Foram todos, nós ficamos, vimos nascer o Sol, ali na Serra do Moradal e já com a claridade da manhã mostrou-me ao longe onde ficava a Serra da Estrela.

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.