Anos sessenta e setenta. O recrutamento em Portugal para o cumprimento do serviço militar estava assente na conscrição de todos os cidadãos do sexo masculino a partir dos 18 anos. A prestação do serviço militar obrigatório, em Portugal, atingiu o seu valor mais alto, em número dos jovens cidadãos recrutados, durante o período de guerra em África e na Índia, entre os anos de 1961 e 1974, tempo que levou para outros continentes muitos dos nossos conterrâneos, alguns acabando por lá ficar a viver e outros ali repousam, em paz, em consequência das diferentes frentes de combate.
O número para alimentar esta guerra do Ultramar ou das Colónias era alucinante. Em 1961, foram recenseados, aos 20 anos de idade, 73.366 cidadãos do sexo masculino, tendo sido apurados para o serviço militar 64,8% do universo recrutável, com o tempo de serviço alargado para dois anos e, dez anos mais tarde, em 1971, o recenseamento foi estendido, pela primeira vez, aos cidadãos que completavam 18 anos, atingindo um número de 91.363, tendo sido apurado 72% do contingente de recrutamento.
Mas antes de ingressar no serviço militar havia que tramitar um processo de seleção que, paradoxalmente, se convertia numa grande festa de antecâmara da guerra e uma espécie de ritual da passagem da vida adolescente para a idade adulta, eram as SORTES!
Os mancebos recebiam guia de marcha para se apresentarem nas juntas médicas na sede do concelho e na Câmara Municipal. Antes da apresentação havia o cuidado de tomar banho, excecionalmente, nas ribeiras ou numa bacia em casa que a modernice das WC era só para alguns. O local da inspeção aos encorpados mancebos e espigadotes jovens ficava paredes meias com a Repartição da Fazenda Pública, situada no 1.º andar, lado direito, da atual Casa da Cultura, sítio da antiga casa da Câmara e do Pelourinho de Oleiros. A sala das sessões de Câmara e o gabinete do Secretário da Câmara, eram locais sem condições condignas para a avaliação da robustez física e psíquica dos candidatos e sobre as condições da prisão, no rés-de-chão, é melhor nem falar…
Os resultados desta avaliação, em gíria popular, designavam-se “sortes” ou “tirar o número”. Após a inspeção eram colocadas as fitas no fato domingueiro. As ditosas fitas pululavam, tocadas pelo movimento ondulante do vento, nas camisas ou nas lapelas dos casacos dos jovens para marcar, inadiavelmente, a sua “sorte”. Vermelha significava “apurado” ou apto, verde assinalava que estava “esperado” ou a aguardar confirmação de aptidão, e branca expressava estar “livre” ou inapto. Esta última era um desmérito para muitos, pois o mancebo tinha defeito, problemas mentais, era vesgo do olho, tinha os pés chatos, etc., mas também alegria para outros pois representava que o cidadão de maioridade estava livre do cumprimento do serviço militar, não ia à guerra! Importa relevar que já existiam as célebres cunhas ou subornos para salvar o jovem da tropa, para ficar livre, nem que para isso houvesse uma convenção de “quantum de uma obrigação de dinheiro” e ou contrapartida de um “belo cabrito”, como apenso.
Certo é que a irrequietude da mocidade, a saída da terra e das saias da mãe em busca de novos desafios carregavam o desejo, irresistível, de ficar apurado. Estava capaz, era um “Homem”, carago! Condição “sine qua non” para um futuro mais generoso que, certamente, doaria uma vida melhor e mais endinheirada, pois naqueles tempos as economias dos seus progenitores eram parcas a não ser que fossem proprietários de belos olivais ou pinhais, pois o azeite e a resina eram uma riqueza!
Era um dia de festa e de estroinice. Os garrafões galgavam de mão em mão, a pinga deslizava farta. A música dos acordeonistas José Martins, da Silvosa, e do Adelino, da Chão da Vã, ficava remunerada pela subscrição das partes. O grupo detinha o porta estandarte da terra natal. Não faltava a gaita de foles e os bombos. Esta vibração única na vida destes jovens animava os presentes e quem se encontrava na vila e no termo. As pandeiretas de percussão, algumas ritmadas e outras fora de compasso resistiam ao frenesim … até ficarem inativas!
A vila virava ornamentada comunhão de cantoria, por vezes bem afinado por vezes bem fora da melodia, mas isso era coisa irrelevante!
Na praça estralejam foguetes, da pirotecnia oleirense, que se ouviam por toda a parte. As pessoas do termo perante tanto rebuliço – que sempre acontecia por altura dos santos populares – pregoavam: é o pessoal da inspeção!
Depois, bem depois, vinha o chamamento para o serviço militar e para a guerra em terras de além-mar, mas isso é outra grande história.
Fui às sortes e safei-me
Direito que nem um fuso
Não compreendo aquele uso
De fazer tudo aprumado
Ele há coisas que eu cá sei
Que só se fazem curvado
Fizeram-me a vistoria
Levaram tudo a preceito
Até me viram o peito
E um pouco mais ao fundo
Cada qual na sua vez
E tal como veio ao mundo
No fim já mais à tardinha
Deram um papel timbrado
Onde vinha o resultado
Não me davam qualquer uso
Fui às sortes e safei-me
Direito que nem um fuso
(Letra de João Monge, Rio Grande, Vitorino)
Testemunho de António Matos: “Na foto a rapaziada da minha inspeção militar em 1963 em casa do Sr. José Esteves Garcia na Portela. Fez-nos o favor levar o pessoal à sua adega. Mandou ir buscar foguetório da Pirotecnia e foi lançado no seu jardim/quintal. Mas que grande ano de inspeção! Eu (lá atrás na esquerda e ao lado do Alcino que pega numa bandeira confecionada, expressamente, pela irmã da Aurora Boaventura). Juntamente com Alcino e José Rodrigues e João Rijo e para além de mais 38 mancebos.
Na foto também está o acordeonista da Silvosa e os bombos (caixa, bombo e gaita de foles) foram contratados algures no Norte. Estes gaiteiros tinham que estar a meter “gasóleo”, constantemente. Bebiam uns copos em quase todas as tascas da vila, e eram muitas, e colocavam na conta da inspeção. Apanharam mais do que uma piela todos os dias nos 4 que estiveram em Oleiros. Curioso que, neste dia, o da gaita de foles foi ter isolado à Portela, casa do Sr. Garcia e porque se meteu numa tasca a meter “mexa” e de pielas, perdeu, totalmente o tino!”
Artigo dedicado à resineira Patrícia Rijo, filha do João Rijo