Crónica

O mundo é pequeno porque há pessoas grandes

Fazer música é muito próximo de viver, podemos fazer planos ou improvisar. Programar música, é como planejar o amanhã, depois de o concretizarmos, reparamos que houve coisas que fizeram sentido da forma que planejámos, outros que na altura percebemos que não, e outros até, que as circunstâncias nos forçaram a alterar. 

Talvez por causa disso, sempre gostei da navegação à vista, na vida, e na música.

Curiosamente, dois dos discos que mais me marcaram, foram o La Scalla de Keith Jarrett, e o Só, de Jorge Palma. O primeiro é um disco cem por cento improvisado, o músico vai tocando, vai criando em tempo real o seu percurso. O segundo um disco de canções, gravado em estúdio, que tem a particularidade do autor, ao contrário do que é normal em estúdio, ter optado por gravar o piano e a voz em simultâneo, precisamente para conseguir captar a essência do momento, em detrimento da qualidade sonora.  

Os dois têm essa particularidade, o momento, a ode ao presente, por isso a frase do José Fortes que está no disco do Palma, me ter ficado marcada para sempre. “Havia duas formas de fazer isto, assim, ou por quem sabe. Fizemos assim.”

Talvez as pessoas mais felizes vivam de presentes, sem componente física.

Talvez a sapiência esteja em perceber que não poderá haver melhor momento para fazer algo, do que na altura em que nos propomos fazê-lo, e não num hipotético calendário criado por uma sociedade que acha que há um tempo para estudar, para casar, para ter filhos…

Não interessa se fizemos por quem sabe, interessa que fizemos, e fizemos assim, como fazia sentido fazer no momento.

No mesmo dia em que um aluno com dezoito anos me disse, “quando tinha catorze anos estive para ir aprender trompete, mas depois não tinha horário e agora também já é tarde”. Recebi uma chamada de uma pessoa com setenta e cinco anos, que precisava de umas aulas de piano.

Um dia entrei em casa do António, o António soube de mim por um amigo comum, tinha setenta e Cinco anos, e tocava piano há mais de quarenta, mas como sempre adorou o presente de estar vivo, não só o temporal, queria trocar impressões pianisticas. 

Combinei ir a casa dele depois de almoço, fez questão que fosse antes, teria que provar o bacalhau no forno. Quando subia as escadas, de um apartamento antigo da baixa portuense, pensei, o António é a demonstração que não devemos pensar que as coisas devem ser feitas numa altura, ou de uma determinada forma, mas precisamente aquilo que o presente nos sugere. Não devemos preocupar-nos em fazer por quem sabe, pois é muito fácil esse pensamento tender para a inação.

Cumprimentei o António, homem com quem saberia que iria aprender imenso, embora curiosamente fosse chamado para transmitir informação, sentei-me à mesa, o António serviu o seu excelso repasto.

A conversa, que me fez ficar a saber imenso sobre a movida musical Portuense de tempos idos, e acima de tudo, a inspiração de ouvir alguém com setenta e cinco anos cheia de vida e de projetos por concretizar, começou assim.

– Deve conhecer o meu irmão, é o Zé Fortes, técnico de som que gravou muitos discos conhecidos…

Autor

Gosta de tocar piano, ler e escrever. Nasceu na Sertã e mora actualmente em Gaia.