Há vários anos, quando estava na praia, encontrei uma pedra, o seu volume e contorções insinuavam a forma de um coração anatómico, dando a ideia de que o órgão fora submetido a uma metamorfose que o levara de uma composição orgânica para uma inorgânica. Era uma pedra planturosa e pesada que encaixava perfeitamente nas minhas mãos abertas e unidas. Sentindo-lhe o peso, ocorreu-me a imagem de ter entre os dedos o meu próprio coração, por isso decidi levá-la para casa. Os meus conhecimentos em petrologia são quase nulos, suponho que naquele dia me apossei de uma rocha sedimentar, deduzo-o porque tenho observado ao longo do tempo a forma como se tem desintegrado e como essa desintegração deixa a estante dos livros suja de poeiras e pequenos sedimentos. Sempre que lhe toco acelero o processo de intemperismo e confirmo o quão acertada foi a intuição de que aquele órgão mineral era também uma representação do meu corpo, já que ambos caminham para a decomposição. Entre mim e a pedra encontro outras semelhanças, somos feitas de milhões de sedimentos dos nossos antepassados, somos um eco corporificado do começo do mundo e em nós vivem os mortos e todas as coisas que foram e deixaram de ser. Quando penso que tudo o que se agregou, dissolver-se-á um dia, ganho consciência do quão extraordinária é a vida, então apetece-me abraçar e beijar e ser explosivamente feliz. Gosto de viver, principalmente, porque há pessoas com quem partilhar a experiência, pessoas que também têm corações e que também são um conjunto de milhões de sedimentos antiquíssimos sujeitos à desagregação invisível. Acho que é esta vulnerabilidade conjunta que torna a vida uma aventura misteriosa e fascinante. Gosto muito deste coração inorgânico a desfazer-se diante os meus olhos porque me fala destas coisas, porque me narra a minha própria mortalidade. Um dia, eu e a pedra doaremos os nossos resquícios ao que nos seguir, seremos também aquilo que deixou de ser. Quando me lembro disto, que vou morrer, sinto-me muito viva, livre e leve, e tudo, simultaneamente, perde e ganha importância.
Coração inorgânico
