Crónica

Estuário (parte 2)

Continuação da parte 1

Num repente, crio no meu corpo aquele desequilíbrio de uma primeira passada larga – como que o início de uma corrida – e lanço o braço para traz para lhe agarrar pela mão. Sem que isso tenha qualquer importância, falho o agarrar da mão mas apanho-lhe ainda os punhos da camisa amarrotada.

– Venha! – digo bem alto, acrescentado uma expressão facial prolongada, porque movimento para além da boca e da face foi nenhum. Fico pendurado e estático como um manequim oblíquo, à espera que ele se mova… a excelência.

– Mas, espera lá pá! O que é que te deu? Ir aonde?

– Venha, sei o que fazer.

– Rapaz, isto não é assim. Não é só arrancar daqui e pronto… Acabo de chegar a Lisboa e só quero saber porque não está aqui ninguém da minha família. Não posso ir contigo! E mesmo que queira ir para minha casa, como levo sozinho os sacos e as minha coisas? Quem leva? Tu e eu, sozinhos? É muita carga e já não vejo os carregadores.

Estes marinheiros dos grandes barcos, estes homens dos mares, eram sempre intrigantes. Traziam sempre sacos e caixas de coisas enigmáticas, para além das histórias de aventuras fantásticas, que aqui entre nós, era o que mais de fascinava. Com tantos sacos e caixas de madeira, calculei que necessitávamos de um transporte adequado – de tração animal – pois, com aquele peso em braços dificilmente iríamos muito além do cais.

É estranho. Não estive atento, mas julgo que nenhum dos outros marinheiros vinha tão carregado quanto este – a quem, por sinal ainda nem perguntei o nome. Talvez por terem saído primeiro não tenha reparado bem, no meio da confusão, mas agora que consigo atribuir toda a bagagem a um só homem, esta parece-me numa proporção desmedida.

– Olhe, porque é que traz tanta coisa?

– Como assim? Não é muito, é o normal.

– Hmmm… e o que é que vem nessas caixas?

– Escuta lá rapaz, já chega de conversa, não tens nada que fazer? Não tens ninguém à tua espera em casa?

O homem não parecia muito interessado em falar sobre nada, mas depois de alguma insistência e do avançado da hora obrigar a uma qualquer decisão além de permanecer ali, acabou por colocar a bagagem de volta no barco.

Passou-se algum tempo, murmurou algo às últimas duas pessoas que por ali se encontravam e lá acabou por vir comigo. Ía finalmente para minha casa, embora a um ritmo mais lento do que o ritmo normal das minhas jovens pernas. Eu estava contente por levar o marinheiro para casa, mostrá-lo aos meus pais, quase como se fosse um troféu conquistado ao final de um dia de aventuras. Ficaria para jantar? Será que teria histórias fantásticas para contar? Passaríamos o serão a ouvi-lo? Projetei na minha cabeça um plano para as horas, e talvez para os dias seguintes.

A ansiedade efervescente acabou à porta de casa com o meu pai furioso com o atraso.

Estremeci.

(Continua)

Autor

Metade músico, metade produtor, metade apaixonado por viagens, metade inquieto profissional.