Crónica

Carnaval – ritos e usos perdidos de Oleiros

Conta-nos Pimentel (1881) “Entre outros costumes dos habitantes de Oleiros há um mui notável, que não temos encontrado noutra parte, e que deve ser muito antigo, porque tem ressaibos de selvagem, e é o seguinte: nas aproximações do entrudo reúnem-se alguns homens à noite e colocando-se nas esquinas das ruas, ou nos sítios que lhes parecem mais acomodados, contrafaz um a fala, de modo mui esquisito, e em voz alta, mui pausada e lamentosa refere alguma anedota, mais ou menos galante, acontecida por aqueles sítios; e de vez em quando dá um grande grito, dizendo: ouviste tu, companheiro? E então os comparsas, colocados alguns junto do recitante, e outros em distância, elevam todos ao mesmo tempo uns grandes gritos, e outros largam estrondosas gargalhadas de riso; continuando depois o cronista a recitar no mesmo gosto até ao fim da anedota. Concluindo o ato num sítio vão repeti-lo noutro, e assim andam todo o serão neste triste divertimento, que chamam arremedar o entrudo. Causa ele muitas vezes sérios desgostos, porque deste modo se publicam segredos de família, ou se assoalham cousas que se deviam ocultar, e é um ato bárbaro, ou antes selvagem, sem graça alguma, que ofende a caridade e os bons costumes, o qual a autoridade devia proibir. Por isso no Capitulo de visita, no ano de 1653, e noutro de 1688 se proíbem tais divertimentos em que, como ali se diz, se descobrem as faltas do próximo, o que então tinha lugar, como ali se lamenta, desde o Natal até ao entrudo.”

Pela narrativa de Pimentel (1881) verificamos que naquele vaivém dos nossos antepassados nas esquinas e nas ruas da vila de Baixo, de Cima, da Misericórdia, da Ladeira, da Praça, da Devesa, do Outeiro, das Adegas e das Cruzes, existiam críticas a atos e factos passados durante o último ano e que naquelas esquinas eram tornados públicos acontecimentos íntimos, comprometedores e desconhecidos de muitos moradores da vila. 

O arremedar o entrudo oleirense insere-se nas manifestações populares de expiação, excesso, crítica, troça, escárnio e mal dizer ou calhandrices da vila de que também são exemplo os  Enterro do Entrudo em Castelo de Paiva, Famalicão, etc. onde manda a tradição ser a oportunidade perfeita para satirizar pessoas, políticos, acontecimentos e hábitos reprováveis de elementos da comunidade local; ou o Enterro do Galo da Chamusca e de Alpiarça, aqui animados por quadras, uma espécie de revista portuguesa, onde se “ajustam as contas” de todo o ano. 

Pelo que lemos do nosso Bispo a ofensiva de não tolerância ao Carnaval surge, em Oleiros, no século XVII. Sabemos que no século XVIII o Carnaval perdeu vigor, mas rejuvenesceu das cinzas na centúria seguinte ganhando adeptos do outro lado do Atlântico, Buenos Aires, Montevideu, e especialmente no do Rio de Janeiro.

Outro uso perdido é a divisão do burro. Conta-nos o Comarca da Sertã, de julho de 1940, num artigo de Jaime Lopes Dias: “CARNAVAL —  Nos concelhos de Oleiros e Sertã procede se durante o ciclo do Carnaval à divisão do burro. Pela noite dentro, nos três dias consagrados à folia, um grupo de rapazes sobem a um cabeço ou elevação dos arredores ou a um balcão de quinta próxima e, falando através de um cabaço partido (um altifalante rústico como estratagema para que a voz tenha mais ressonância e não possa ser reconhecida) distribuem as diferentes partes do burro, ou todo o burro, por pessoas suas conhecidas a quem desejam surriar (manifestar desprezo, escárnio ou desagrado por meio de vaias ou assobios) ou irritar. E em quadras improvisadas, de que a seguir damos algumas então recolhidas, vão mencionando as pessoas: 

– Aí vai a cabeça 

P’ro senhor Zé Monteiro 

A que ele tem não presta 

A do burro vale mais dinheiro

– Um pedaço do burro 

É para a Maria Padeira 

O que ela precisa é a pele 

Pra fazer uma peneira! 

– Lá vai o burro inteiro 

Pra casa do Sr.  Lopes 

Quando os dois se encontrarem 

Começam ambos aos pinotes 

– Olha, olha, olha! 

Lá está o Zé Branco! 

Comeu tanto do burro 

Que já não se levanta do banco.”

Estamos perante uma forma de vindicta popular ou noticiário da censura do povo, de ironia, de crítica social e impropérios de sentimentos. Possuíam estes costumes uma linha mestra: a crítica social, mas sempre purificadora.

Estes rituais sinalizavam o fim do período do divertimento, pois na 4.ª feira de cinzas iniciava-se a Quaresma, tempo de penitência, abstinência e oração.

Durante a Idade Média o Carnaval foi tolerado pelo clero que apenas decretava uma condição: tudo tinha que estar findo na quarta-feira de Cinzas.

Em Portugal o Carnaval chegou a raiar a imundice tendo que as autoridades legislar e tomar medidas enérgicas para limitar os excessos dos foliões. 

Lembro-me que, nos anos 60, na terça-feira de Entrudo, as ruas oleirenses transvertiam-se de campos de combate, com danos colaterais nos transeuntes: ovos, farinha, sacos com mau cheiro, etc. e sempre com o parqueamento de carroças de bois ou mulas que, nessa data, eram desviadas à socapa, e tinham estacionamento garantido na Praça, junto da Câmara, ou na Devesa.   

Em Oleiros, memoro, o enterro do entrudo na Praça, e o riso dos nossos ancestrais com os versos do Sr. Julião Alves, do Carril, que de fato ortodoxo clerical, chapéu e nabo na mão, apregoava aos sete ventos e lançava o dito da ponte da Ribeira Grande à agua.  

Num tempo em que há tanta imitação do estrangeiro, deixo a sugestão de repristinar um singular Carnaval oleirense para deitar fora os restos de um tempo ido e de dar início a uma nova etapa da vida onde a criatividade, a irreverência e o atrevimento seriam lemas com forte identidade e com um imenso potencial de visibilidade e promoção do território. 

Autor

Gosta: de sopa de couves e feijão; de cousas simples; da mãe natureza e de fazer feliz o outro!