Há alguns anos atrás morreu-me um amigo, dito assim e escrito assim, porque “me” morreu quando eu não esperava. Não era um amigo de sempre, tinha chegado à minha vida recentemente, tinha tido um acidente de mota e estava em casa de uns tios a recuperar, isso aproximou-nos, não tínhamos a mesma idade, ele era mais crescido, mas tornámo-nos próximos. Daquele acidente que teve resultam amputações de ambas as pernas, uma abaixo do joelho na outra acima do joelho. Assisti aos regressos dos internamentos em Alcoitão, vinha de rastos, passou da cadeira de rodas para a adaptação primeiro a uma das próteses e depois, longos meses depois, à outra prótese. Vi-lhe as mudanças de humor, havia dias em que estava irascível, abeirando-se do insuportável. Era um jovem adulto que se via de um momento para o outro sem mobilidade, teve que reaprender a andar, mas mais que isso, teve que se aceitar a si mesmo, com as suas incapacidades. Teve que aceitar mais do que a responsabilidade do seu próprio acidente (despistou-se sozinho de mota), a responsabilidade e a aceitação de si mesmo.
Passeamos, fomos ao cinema, durante um ano tivemos uma relação de amizade, ele dizia-me muitas vezes, em situações em que precisava de mais tempo para pequenas tarefas, como entrar num autocarro, ou sentar-se numa mesa de café: “- Só me conheces assim, mas eu já tive outra vida, já corri, já fiz cenas incríveis!” Sem saber que o mais incrível que ele fazia aos meus olhos era continuar a viver, apesar do azedume que destilava por vezes.
Fazia coisa inacreditáveis, algumas sórdidas, insólitas só com o propósito de chocar as outras pessoas, como por exemplo colocar o isqueiro num pequeno buraco que a prótese tinha junto ao joelho, atravessando as calças… ”-Gosto de chocar as pessoas que me olham com pena!”, ou de deixar o pé de borracha a saltitar, propositadamente quando estava sentado e alguém o olhava percebendo que alguma coisa nele era diferente.
Num dia bom, em que estava menos irascível, julguei eu, mais introspetivo disse-me uma coisa que ficou comigo até hoje: “-Sabes, quando estava caído na berma da estrada, já com os Bombeiros ali ao pé, passou-me pela cabeça que se calhar tinha mesmo morrido, e tive pena! Tinha deixado tantas coisas para dizer a tantas pessoas…” Fez uma pausa depois de ter sublinhado que não era autocomiseração o que sentia, o que tinha era pena de deixar coisas por dizer. E seguiu dizendo: “ – Todos os copos, todos os jantares que tinham ficado por beber e por marcar com os meus amigos…” Nova pausa, para seguir dizendo que as agendas eram difíceis de conciliar, e que ele próprio respondia muitas vezes que naquele dia não podia, que não ia dar. Mas que havia um momento nas vidas de quase todos em que sem pré-aviso ou marcação, vais e compareces, deixando outras coisas por fazer: “-Velórios e funerais! “ Rematou dizendo: “-Se morri, vou lá estar de certeza, eles todos também”
Depois da sua recuperação ter sido considerada como completa em Alcoitão, voltou para o Algarve, só nos víamos quando vinha às consultas de seguimento, fomos perdendo o convívio diário, falávamos ao telefone (não havia telemóveis na altura) e com isso acabamos mesmo por perder o contato. Só soube que ele se tinha suicidado alguns dias depois de ter acontecido. E pensei: Caraças, faltei-lhe ao funeral!
Mas o que guardei até hoje do Carlos foi o não deixar assuntos importantes por esclarecer, coisas por dizer. Gosto de ter as minhas conversas ao dia, atualizadas. Não gosto de conversas inacabadas, é uma cobardia minha, o que não quero sentir são remorsos, por ter deixado coisas por dizer. Tento, nem sempre consigo, estar por perto das minhas pessoas, não deixar desafios ou convites ou conversas em aberto. Às afirmações do género: “- Temos que marcar um almoço!”, ou “– A ver se nos encontramos”, tendo a responder com uma data e uma hora… também aprendi e aceito que nem sempre acontece e vivo bem assim mesmo.
Por isso, quando vi um anúncio que andou nas televisões em que um senhor já com uma certa idade forjou a sua morte, para que os filhos e netos viessem ao seu funeral, depois de nos terem dado a entender que não iriam passar o Natal juntos, pelas tais dificuldades em conciliar agendas, sorri, e claro, lembrei-me do Carlos. Quando é inevitável, vamos, quando é inadiável estamos!