Grande parte das minhas memórias de infância são sensoriais. Apelam ao toque quente do abraço da avó e aos cheiros nebulosos dos fartos almoços de domingo. Dos sabores, nem me façam ir por aí que tenho a felicidade de ter crescido rodeada de tantas memórias boas, que ainda hoje me fazem viajar por recordações e resgatar passados felizes.
No entanto, com o advento do digital não sobra espaço para grandes experiências sensoriais e as vezes que nos mexemos durante o dia resumem-se a um número quase marginal. Ainda pertencemos a um corpo físico com todos os seus sentidos, mas a sua presença nas nossas vidas é cada vez mais limitada.
Sinto que estamos, dia após dia, a tornar-nos mais “cérebro” e menos corpo. O mundo virtual em que fomos forçados a viver, em muito contribui para esta descorporização a que hoje assistimos. E assim deixamos emergir uma sociedade mais mental que sensorial, onde são mais as vezes em que estamos, do que aquelas em que somos.
Quando é que deixámos assentar esta ideia de um “eu” diferente de “o meu corpo” como se de duas entidades desagregadas se tratasse? Um “eu” que quer coisas e tenta conquistas .vs. “um corpo” que por vezes surge no caminho como impedimento ou embaraço. Por falta de pontos de referências de um corpo que nos pertence, quantas vezes deixámos de fazer coisas porque simplesmente não se concebem existir sem compleição física associada?
As memórias que hoje guardamos não foram sentidas com a cabeça, antes com este corpo que lhe vem agarrado e que tantas vezes deixamos esquecer. No dia em que nos lembrarmos que ele existe deixamos de ter “um corpo” e passamos a sê-lo.