Crónica

O Monstro que nos come os dias

O Monstro que nos come os dias, ou de como o dia vira noite, sem que se trate de um episódio bíblico, é um apocalipse sentimental, sim! E por mais anos que vivamos, por mais vezes que essa experiência que não pedimos, nos caia em cima, nunca estamos preparados.  

Uma vez tentei explicar a um amigo que é litoral, sem qualquer ligação à ruralidade, ao pinhal, ou ao verde alto e esguio dos nossos pinheiros, o que se sente quando tudo à volta está a arder, e não é fácil encontrar sentimentos e muito menos palavras para que lhe fosse possível visualizar, lembrei-me de utilizar uma metáfora que talvez lhe estivesse mais próxima: as mães e mulheres de pescadores que ficam em terra, quando os seus filhos e os seus homens vão para o mar, sem saber qual o tamanho das ondas que vão enfrentar, ou quanta água lhe vai entrar borda a dentro. A princípio franziu o sobrolho, as sobrancelhas uniram-se e os olhos azuis, como o seu mar, encolheram-se ainda mais, no segundo seguinte mostrou-se disponível para escutar e li-lhe no rosto a imagem que lhe tinha lançado, foi assim que continuei: Por lá é igual, quando toca a sirene dos Bombeiros, correm todos, normalmente os homens e os rapazes, hoje há mulheres que dignificam os uniformes vermelhos, como os seus pares, mas quando esta estória se passou, não havia, pelo menos tantas. Se estiverem num café deixam a chávena, se estiverem nos seus trabalhos, deixam tudo, e vão, simplesmente vão. As mulheres e as mães deles, por vezes acumulam estas funções (são mulheres e são mães de bombeiros), ficam sem notícias, horas, vários dias, por vezes.
Pouco lhes resta, assim como as mães e as mulheres de pescadores, são as mulheres e mães de Bombeiros, as primeiras sentam-se na areia a olhar o infinito entre os azuis, as outras sobem normalmente ao adro da Igreja, o local mais alto da vila, para tentar o impossível: descortinar para lá do fumo, todas com os olhos marejados de lágrimas e o coração a palpitar em ritmos descompassados, acompanham-se, rezam, abraçam-se e esperam, esperam que os seus homens e os seus filhos não sejam engolidos e que retornem, uns do mar, outros do fogo.

O dia entretanto há-de ter virado noite, não por conta da lua nem das estrelas, e por cima de todos quantos ficam na vila, caem: fuligem, cinzas e por vezes pequenos pedaços de caruma e cascas de árvore a flamejar é sempre assim, há vários anos que é assim, mas não é por ser mais do mesmo que isso não nos faz mais fortes. E eis que voltam as companheiras destes momentos: a angústia, o desespero e a tristeza.

O cheiro já há-de ter invadido tudo, o cheiro a queimado ali, como o cheiro a maresia, já tomaram conta dos narizes e dos olhos, e parecem até apagar os cheiros dos que foram, naqueles momentos, as mulheres e as mães parecem não conseguir sentir-lhes mais o cheiro.

Agora, que desde domingo há fogo à volta de Oleiros, em que não houve eletricidade nem telefones, ou telemóveis, não podemos ligar-lhe para lhes dizer o quanto gostamos deles, porque não há mais que lhes possamos dizer, ou fazer.

Já estive por lá, mais do que uma vez, quando alguém semeou um desses monstros, é avassalador, ficamos esmagados, há quem suba a serras sabendo que não se deve, para vê-lo cuspir fogo, para lhe sentir o tamanho, ouvir-lhe os avanços, sim, o fogo também se ouve, ouve-se o vento que o espalha e ouve-se o crispar das árvores, há quem liberte animais, há que rege casas e hortas a balde e a mangueira, há quem se desnorteie, há quem fuja, há quem vá, em socorro dos seus, sem saber se passa, ou se chega ao outro lado do adamastor laranja, não há mais legitimidade nuns do que noutros, são todos gentes, gentes nossas.

Vi pessoas a chegar ao Quartel de Bombeiros, com a roupa do corpo, uma caixa com dinheiro e jóias, e duas molduras na mão, tinham sido evacuados, vi Bombeiros chegarem para serem rendidos, caídos no chão, um deles a pedir outro par de botas para poder seguir novamente, o que eu vi, mas ele não, foi que a pele dos seus pés estava em ferida, que as botas que descalçava levavam com elas as meias e o resto do que lhe faltava nos pés. Vi mulheres e mães a preparem refeições, vi pessoas a mobilizarem-se para ajudar, vi solidariedade arrancada do desespero.

E depois do dia virar noite, depois do céu se cobrir de fumo, que se pode cortar à faca, quando a noite da lua tiver passado, havemos de ver o manto cinzento que nos cobre as serras ao redor, que antes eram verdes, havemos de ver fumarolas às vezes longe, outras mais de perto, haverão de ver-se os cotos das árvores que teimaram em ficar de pé a cuspir fumo durante vários dias, o chão há- de queimar pela conta dos mesmos dias.

Entre todos, os que estão lá, e os que estão longe, à espera de notícias, perdemos sempre: ou porque alguém perdeu árvores, animais, casas, e às vezes até pessoas, que mesmo que não sejam da nossa família, que não sejam do nosso barco, são da mesma armada, são sempre as nossas pessoas!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.