Quando as intermitências da memória e do espaço começaram a falhar-lhe e as bizarrias do comportamento despertaram, a Maria não acreditou, desculpou e apressou-se a encontrar outros responsáveis, quando as gavetas dos móveis lá de casa apareciam semi-abertas, também não era ele, mais depressa a casa estaria assombrada, do que o Zé andaria a deambular, a mexer nos móveis, se calhar à procura das memórias que já escasseavam, mas não, não era o Zé.
O Zé da Maria que durante o namoro desfazia os 60 km que os separavam, a pé por entre caminhos que não existiam, à sexta feira à noite, que acendia um cigarro no outro para afastar os lobos que se cruzavam com ele no caminho, e que ao domingo à noite os tornava a fazer com cigarros acessos, não, o Zé não.
O Zé foi o namorado carinhoso, foi o marido atencioso, amoroso, foi o pai extremoso, que levantava, cuidava e penteava a filha deles antes de a levar para a escola, que à tarde a ia buscar para o armazém de azeite e petróleo, que a deixava brincar com as rolhas das garrafas, que lhe vestia um bibe para que a Maria não ralhasse com eles ao final do dia, que aquelas nódoas de gordura lavadas à mão teimavam em não sair, o Zé trazia a filha às cavalitas de volta a casa, mas antes de entrarem, ajeitava-lhe as tranças e tirava-lhe o bibe, para que a Maria não se zangasse.
Quando viram a sua menina das tranças, a única que tinham, que tiveram, adoecer e morrer, amparam-se, choraram juntos e durante muito tempo mais, choraram às escondidas um do outro. Quando nasceram os bisnetos voaram os dois, na nossa direcção, numa armada invencível de cuidados e carinhos.
Quando a Maria caiu e partiu um pé, o Zé não aceitou mais ninguém lá em casa, cuidou-a, empurrava-a numa cadeira de casa, onde colocou uns calços para que deslizasse melhor, ou quando a Maria voltou a cair e dessa vez partiu um braço, foi o Zé que a cuidou, que lhe deu banho, que a vestiu, e que aceitou de sorriso nos lábios e mel no olhar, as suas indicações para preparar as refeições, a Maia sempre foi boa a mandar, a distribuir tarefas, o Zé chamava-a carinhosamente de Generala.
Quando o olhar do Zé passou de vivo, luminoso e presente, a baço e ausente, a Maria demorou a acreditar, mas aceitou sem hesitar, aquele corpo que antes tinha sido de prazer e de entrega, de paixão e de desejo acesso, passou a ser um corpo presente com a alma ausente, perdido e desnorteado, sempre que a Maria ia de uma divisão para a outra da casa, o Zé perdia-se, deixava de pertencer.
Quando o Zé caiu à cama, a Maria montou um hospital em casa, veio uma cama articulada, com um colchão que eléctrico, mudaram-se ambos para outro quarto maior, onde cabiam as duas camas, lado a lado, a conchinha que faziam para adormecer noutros tempos, deu lugar às mãos entrelaças por entre as grades da cama do Zé. A Maria que era cardíaca, que precisava de dormir, deixou de tomar os medicamentos, para passar a vigiar o sono do seu Zé, para que nada lhe faltasse, para que quando acordasse, molhado, ela o pudesse levar para tomar um banho, a qualquer hora da madrugada, aquecia-lhe as toalhas com que o enxugava depois do banho, e diziam-nos que ele a beijava na testa e lhe agradecia cada uma das vezes.
Que não, que não podia ser, dizíamos nós, os mais pequenos da equação, que um dia cairiam os dois, a meio da noite, que havia outras soluções, que o Zé tinha que ser cuidado por outras pessoas, talvez até noutro sítio, mas a Maria respondia-nos sempre de certezas feitas: “- Não pode ser de outra maneira, vai ser assim, prometemo-nos sempre que nos iriamos cuidar um ao outro até sermos velhinhos!”
O dia chegou e o Zé teve que ir, fizeram os dois os mesmos 60 km que o Zé desfazia a pé, para a ver aos fins de semana, mas agora na ambulância, foram de mãos dadas todo o tempo, o Zé indiferente a tudo, um fio de gente, a Maria indiferente às serras e aos buracos da estrada, que sempre a enjoaram, a parti dali, nunca mais enjoou.
Durante o tempo que o Zé não esteve em casa, cerca de três meses, não houve um único dia que a Maria não desfizesse os 120Km totais, para o visitar, era verão, o calor era insuportável para todos, menos para a Maria, que furou todas as horas de visitas autorizadas, para lhe dar à boca o pouco que ele comia, por entre beijos na testa e festas no rosto. Quando não eram horas de comer, a Maria destapava-o, espalhava creme nas mãos e massajava-o, no final borrifava-o com uma brisa de água termal, até hoje desconfio que aquilo era um ritual de despedida, era a Maria a despedir-se do seu amor, do Zé e do seu corpo.
Por aqueles dias o Zé já só respondia com a mão apertada na nossa, quando eu lhe dizia: “- Avô, gosto tanto de ti!” Ele apertava-me a mão, com as poucas forças que lhe restavam. Eu apaziguava-me, sempre soube que o amor não se media por palavras.
À revelia das indicações dos médicos, a Maria levou-lhe por aqueles últimos dias batidos de iogurte com os morangos do quintal, num esmero só deles, o batido ia envolto em gelo, para que chegasse fresco ao Zé, e rosas frescas para a jarra da mesa de cabeceira, os morangos e as roseiras que o Zé plantou. Era a Maria a levar o Zé para casa, e ele, abria os olhos, juntava os lábios e soprava-lhe um beijo.
Porque amar é sobreviver, a Maria sobrevive-lhe.
Foi um amor sem hashtags, mas foi até serem velhinhos, como se prometeram!