Crónica

As minhas CAROLINAS

Não é pouco frequente andar muito acelerada na vida, e no carro, menos agora que os trajectos habituais me são nos últimos tempos mais curtos, é aliás bastante comum ter pequenas angustias de tempo, como uma camisola de lã que se lava e encolhe, quando queríamos era que esticasse, sobreponho muitas notas na agenda, muito lugares em que tenho ou quero estar, e depois, bom depois, há dias em que não chegam nem a quantidade de horas nem os lugares onde haveria de ter estado. E claro, foge-me o pensamento, aquele que não controlamos mas que nos habita a todos, para a lamúria, para a micro angústia e o queixume…

Num destes dias, parei o carro e já habitada pelos micro pensamentos angustiantes que me levantam involuntariamente o cabelo em especial as melenas por cima da testa, desenganem-se que não é de soprar para o ar, dizia, li num muro, ali à minha frente o nome: C-A-R-O-L-I-N-A, não pude deixar de sorrir, e sorri, sorriu muitas vezes para os meus próprios pensamentos pequeno-burgueses angustiados.

Sou descendente de duas Carolinas, na minha origem estão duas mulheres beirãs e guerreiras, ambas do início do séc XX, talvez uma delas tenha ainda nascido no final do séc. XIX, ambas criaram filhos no interior da Beira Baixa, sem maridos ou companheiros por perto, quase sem rede de apoio.

Uma das minhas Carolinas teve três filhos, uma rapariga e depois dois rapazes gémeos, dois progenitores diferentes, nenhum por lá ficou, nem sei se os filhos foram sonhados por ela, ou lhe foram impostos contra a sua vontade, era menor quando engravidou pela primeira vez, ela nunca quis casar para proteger a sua menina, para que nunca nenhum homem lhe batesse, os filhos tiveram direito a dois nomes próprios, sem apelido e o “pai incógnito” andou-lhes impresso no bilhete de identidade, desde sempre. A minha bisavó, Carolina duVal, não tinha que se saiba ascendência francesa, mas era comum comerem-se algumas sílabas às palavras, levantava-se de madrugada, ainda o sol dormia, espevitava o lume na lareira, os miúdos, entretanto já só dois, um dos gémeos morreu antes de completar uma volta ao sol, ficavam a dormir, ela ia buscar água à fonte, escovava os cabelos, dizem-me que era muito briosa, tinha tido um passado mais abastado, antes da família perder as terras, os animais e a casa para os homens do arresto. Viveu nos currais da casa dos pais. Onde antes se criavam animais, ela criou os filhos. Saia com uma candeia de petróleo para lhe alumiar o caminho e ir buscar o correio e levá-lo à vila, caminhava por carreiros, pelo meio de silvas, com a mala do correio às costas, fosse o tempo soalheiro ou inverno rigoroso, por vezes a neve chegava-lhe aos joelhos, ia e voltava, mais de uma dezena de quilómetros, e quando voltava, o sol ainda mal tinha acordado. Beijava os filhos, acordava-os devagarinho era cuidadosa e carinhosa com eles, andavam sempre limpos, a roupa era lavada à noite e vestida de manhã, se havia remendos a fazer, fazia-os ao serão, gosto de a imaginar a olhar as estrelas por entre os buracos das pedras a que chamava casa, a minha avó, conta que tinha um bibe branco para brincar que usava por cima do vestido, no cabelo a minha bisavó fazia-lhe tranças que terminavam com lançarotes, resquícios da outra vida que terá vivido. O Senhor Corregedor dava-a como exemplo de esmero e asseio à sua própria esposa: “- Põe os olhos nos meninos da Carolina, sempre limpos e asseados!” Da outra vida restavam poucos objectos: um frasco com letras esbatidas a dourado, onde se podia ler a custo: Eau, um açafate com lenços, uma mantilha rendilhada de ir ver a Deus e um terço.

A minha outra Carolina teve quatro filhos, tão-pouco sei se desejou os seus filhos, ou se também lhes foram impostos contra a sua vontade, teve três rapazes e uma rapariga, vivia na vila, não era tão periférica, esteve muitos anos confinada a tomar conta da filha, a quem sempre ouvi referirem-se como: “a entrevadinha”, os filhos também não provinham do mesmo homem, tinham também o tal de Incógnito na paternidade, dois tinham olhos azuis, os outros não, aos mais crescidos tocava-lhes sair, ir buscar água, molhos de mato e lenha para aquecer a casa, trabalhar para outros, a troco de comida, andavam descalços. Para estes dois não havia tempo, nem vagar para que fossem à Escola, o meu avó foi, sem que a sua Carolina soubesse e ainda explicava a matéria a algum miúdo menos dotado, a troco de comida, que levava para casa para dividir com a mãe e com os irmãos. Foi com espanto que a minha bisavó o autorizou a fazer exame da quarta classe, foi o Senhor Professor que lhe pediu, que o rapaz tinha jeito, que seria uma pena se não o autorizasse. A Estefna, espantada lá autorizou. Sei pouco mais desta minha Carolina, a quem muitos teimavam em não tratar pelo nome próprio e se referiam como Estefna, porque a sua mãe se chamava Estefânia.

As minhas Carolinas, eram beirãs, mulheres de fibra e calibre, cuidadoras, matriarcas, sem espaço público, sem voz, como tantas outras…

Foi por isso que sorri quando vi aquelas letras ali, naquele muro, esbati as micro angústias, afinal não têm tanta importância assim!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.