“Os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a alma.”-
George Bernard Shaw

Sendo os oleirenses um povo extremamente crente e temente a Deus não é de estranhar que no nosso concelho surjam várias manifestações de fé através da criação de grandes infraestruturas ou até de singelas capelas, como as chamadas “Alminhas”, que hoje são objeto desta singela crónica.
Citando Vergílio Correia1: “Alguma razão hão-de ter os rurais para colocar á beira dos caminhos, nas encruzilhadas, na frontaria das casas ou dos pátios, esses quadrinhos em que continuadamente se implora da piedade dos fiéis a esmola de um P.N. (Pater Noster) e A.M. (Avé Maria). Essa razão, porém, não a conhecem eles, porque lhes vem de muito longe, do fundo das idades, desde onde a sua noção clara se foi aos poucos diluindo …”
Estas Alminhas, dispersas pelas diferentes terras ou aldeias, são exíguos oratórios situados à borda ou beira dos caminhos ancestrais ou vias pedestres, lembranças e heranças da religiosidade dos nossos antepassados e ancestrais.
Recordo-vos que tudo é finito “que somos pó, e em pó nos havemos de tornar”, pelo que ao passarmos naqueles sítios devemos orar ou rezar pelas benditas almas do Purgatório para que estas sejam purificadas e, assim, possam elevar-se ao céu.
Foi no Concílio de Florença e de Trento, 1545-1563, que se desenvolveu o conceito de Purgatório. Importa relevar que quando falamos do Purgatório não nos referimos a um lugar, mas de um “estado de alma” onde é possível fazer a transposição para a purificação, e ascender ao Céu. Assim na visão da igreja católica, e somente nesta, surge o Purgatório que se explica como a antecâmara do céu, onde haverá um duplo julgamento. Isto é um estado primário – no momento pós-morte – temporário e haverá um segundo, no final dos tempos, este decisivo e irreversível. Foi instituído um intervalo no destino humano que permitirá, através da solidariedade e da oração dos vivos, perdoar e aliviar as penas do “de cujus” ou do morto. Passou a existir a convicção de que as almas dos fiéis defuntos sairiam tanto mais cedo do Purgatório (fogo) quanto mais orações e esmolas fossem feitas pelos vivos.
A partir do Séc. XVII em Portugal a representação artística do Purgatório intensifica-se quer nas pinturas nos templos quer em arte iconográfica de nichos e capelas nas cidades e nas localidades recônditas com forte carga em algumas das passagens da Bíblia onde se fala do fogo que é usado como símbolo de purificação e refinamento.
As Alminhas, que nos incitam à piedade e à recordação da morte dos nossos antepassados, são constituídas, normalmente, pelo oratório e por retábulo de madeira, de azulejo ou de pedra. É no retábulo que assoma a figura do Purgatório, feita através de pintura ou de painel de azulejos, algumas com dizeres, como é exemplo: “Tu que estás passando lembra-te de quem está penando” (Felgueiras, Oleiros); “Oh vós que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando!”. Em termos artísticos, estas representações são singelas ou naif (ingénuas, inocentes ou naturais e sem artifícios). As imagens têm em comum a labareda expurgatória e, entre as chamas, representam-se as almas condenadas em tronco nu, em gestos de reza ou oração, outras a serem retiradas as almas do fogo eterno por querubins ou anjos. Na parte superior da iconografia estão representadas, por entre as nuvens do céu, Nossa Senhora ou alguns Santos advogando junto de Jesus Cristo, pela libertação das almas.
Há outras Alminhas que representam a imagens de Santos ou de Nossa Senhora a quem caberá fazer a intercessão dessas almas, como é exemplo S. Francisco de Assis (Gaspalha, Oleiros) ou a da NS de Fátima, (cruzamento do Sobral, Oleiros).
De cariz genuinamente lusitano estas capelinhas das almas integram uma relevante demostração da religiosidade e fazem parte do amplo património artístico-religioso-cultural oleirense.
Há diversos tipos de Alminhas em que os olhos deste caminhante lobriga no caminho de vida: em nichos que se abrem nas fachadas, como por exemplo no lugar da Cava, na Isna, ou em Álvaro, junto da ponte romana; em padrão como por exemplo no Roqueiro; em pequenas casas cobertas por um telhadinho de várias águas (normalmente duas), no Porto de Álvaro (quatro) e em Ademoço (plano), ou até em tríplice construção (promessa de 3 irmãos na guerra do ultramar) como podemos vislumbrar entre o lugar da Longra e ponte romana de Álvaro.
Com o passar dos tempos algumas destas manifestações etnográficas do culto dos nossos antepassados estão a desaparecer ou jazem sem painéis, por vandalismo, combustas pelos incêndios implacáveis dos humanos ou abandonadas ou desprezadas pelo descuido dos vivos entre o mato dos velhos caminhos. Outras são afagadas por gente humilde e simples que não deixam o seu nome ali cinzelado, mas cujo carinho e amor na sua manutenção garante um precioso património de arte sacra e marca de memória para os vindouros.
Soe que Portugal é o único nação do mundo que detém as alminhas como seu património cultural !
1 CORREIA, Vergílio, 1888-1944. Etnografia artística: notas de etnografia portuguesa e italiana. Porto. Renascença Portuguesa, 1916