Crónica

A Cave

Há lugares que se falassem teriam muito para contar.

Esta cave se falasse não se calaria, seriam necessárias muitas horas para contar as histórias que por lá se passaram.

Era a cave de um restaurante dos pais do nosso amigo, bom na verdade dos nossos amigos, eram dois, a irmã era mais crescida. Em cima, as mesas atestavam-se aos almoços, mas menos aos jantares. A mãe destes nossos amigos era uma cozinheira fantástica, dominava a arte do fogão com uma mestria de sabores e cheiros, fazia magia a juntar poções mágicas, vi saírem-lhe das mãos os Molotofs mais bonitos e mais saborosos, verdadeiras obras-primas de arquitectura frágil na aparência, tremelicando enquanto eram levados do balcão para a arca vertical que os manteria ali, frescos, mas fortes em sabores, o caramelo deslizava como se nada fosse ao acaso. Os melhores Buchos Recheados que comi eram os seus, fazia-os com esmero, havia-os na cozinha prontos a servir, e descobri mais tarde que alguns repousavam no topo da arca frigorífica. O pai estava sempre pronto, ao balcão, atendia todos com um sorriso nos lábios.

Mas não é do restaurante que vos falo, era do que se passava lá em baixo. Não sei se alguma vez a cave foi sala de refeições do restaurante, sei que terá sido arrecadação, aliás nas primeiras vezes que lá entrámos havia grades de refrigerantes amontoadas junto a uma das paredes, o resto da sala estava separada por um cortinado opaco, vermelho escuro, creio, porque me lembro de ter um ar cénico.

Não me recordo do dia em que descemos as escadas pela primeira vez, para juntarmos umas mesas e ficarmos por ali à conversa, arte que dominávamos com grande mestria, por aqueles tempos, o tempo que agora contamos em minutos apertados, sobrava-nos ali. Também não me lembro do dia em que a aparelhagem tomou conta do espaço, mas lembro-me de alguns álbuns que ouvi ali pela primeira vez, trazidos por vários, estaríamos no final da década de oitenta, início de noventa, acontecia muita coisa no mundo, ali menos, ou tardava em chegar. As cadeiras, desconfio que teriam o formato dos nossos rabos marcado, e estavam agrupadas de acordo com as amizades e os namoros da época. Eram horas a fio, descíamos num dia e quando subíamos aquelas escadas para sair, já era outro dia. Nalguns casos o sol já ia alto, já havia serviço no café, cá em cima.

Eram conversas sobre o futuro, sempre sobre o futuro, porque os jovens, felizmente, não têm quase nunca passado suficiente para se falar dele. Eram conversas sobre desejos e sonhos, todos possíveis, todos por concretizar, há melhor? Quando o que bebíamos precisava de ser ensopado, o nosso amigo subia à cozinha mágica e aquecia manjares, banquetes, com que nos deliciávamos: Maranhos, Buchos, às vezes Sopa de Peixe que bebíamos nas canecas do chá.

Era um tempo em que se fumava em todo o lado, e muitos fumávamos, havia dias em que o fumo se podia cortava à fatia. Havia sempre música a tocar, as novidades musicais chegavam também à papelaria da vila, pelas páginas do Blitz, que talvez só nos chegasse no dia seguinte. Depois… bom, depois, alguns estudavam em Coimbra, ou Castelo Branco, ou em Lisboa onde se compravam, vários meses depois os álbuns anunciados nas páginas que já tínhamos lido. Às vezes as novidades chegavam via cassete, gravada da rádio, por exemplo.

Talvez por não ser nativa, e voltar apenas nas férias, não consigo precisar o momento em que a cave passou a ser discoteca, mas a verdade é que passou, havia uma bola de espelhos no teto, luzes, uma cabine de som, uma pista de dança e um bengaleiro. A zona das mesas e das cadeiras manteve-se por lá, o espaço não terá crescido, foi o tal cortinado vermelho que avançou, e passou a forrar a parede do topo da sala, pelo meio dançava-se. Julgo que sempre terá sido uma discoteca informal, não estaria aberta ao público.

Havia um lugar que era místico, era o da cabine de som, ficava no vão das escadas entre o restaurante e a dita cave, subir ali, olhar a pista e ver os amigos a dançar como se ninguém os estivesse a ver, era único. Fizeram-se ali as melhores festas de que tenho memória, com os amigos de sempre e para sempre!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.