Tenho um pensamento recorrente: os seres humanos são muitas vezes invisíveis uns aos outros, esta frase também resulta de outra forma: os seres humanos são muitas vezes invisíveis uns para os outros. Há muitas versões de cada pessoa, haverá tantas quantas as que as observam.
À medida que os anos me passam, vou colecionando cada vez mais momentos irrepetíveis o que é que isso diz de mim? Pouco me importa se for uma visão externa. O que é que isso me diz? É toda uma outra estória. Há várias razões para que esses momentos na minha caderneta se tornem irrepetíveis, ou porque se reuniram naquele momento pessoas, locais, e situações que de tão imprevisíveis e inusitadas não vão voltar a acontecer, ou pior, porque já me faltam essas pessoas que estiveram e fizeram parte.
Há pedaços de alma que são insondáveis, herméticos e impenetráveis, sublimes porque só cada um sabe o que por lá se passa, na realidade, se calhar, nem os próprios sabem.
Refiro-me a momentos como: quando um pianista lança as mãos às teclas do seu piano, ganhando uma espécie de balanço, pestanejando sem parar, rodando a cabeça lentamente, até que os sons desses acordes se soltem, à espera de os reconhecer, para logo a seguir fechar os olhos, e passar a sentir a música em vez de a tocar, balança mais alma que o corpo, e quando toca com outros, o momento em que apenas semi-abre os olhos, à procura do mesmo sentir, da mesma harmonia na sua banda, como se por dentro escutasse a voz: Ok, estamos todos, siga!, Ou quando um tocador de viola se enlaça nas cordas dela e as dedilha instintivamente, com os olhos também fechados e um ligeiro arquear de pescoço, que leva o troco lá trás, uma abertura lenta de olhos. É neste instante, nesta fração de pequenos segundos, que eu gostava de parar a imagem e encerrá-la com tudo, para lhe perguntar: – O que estás a sentir? – Onde estás agora?
Ou, quando numa banda jazz os improvisos que nunca foram ensaiados saem das notas de cada instrumento e se agregam como se só assim fizessem sentido.
Ou ainda quando o vocalista de uma banda canta de olhos fechados, às vezes mãos nos bolsos, contra todas as indicações de projeção de voz, quando a sua cabeça parece apenas presa por um pedaço de coluna, talvez só a modular, e os volteios saem desengonçados, as pernas e os pés balançam-se num ritmo que por vezes é só dele, quem vê, de fora, parece-lhe quase fora de ritmo.
Se há momentos sublimes, acredito que é ali, naquele momento, numa entrega a si próprio, sem constrangimentos, é como dançar quando ninguém vê, quando se sente a música, quando ela ressoa dentro, nos tímpanos, no coração, noutros órgãos, ninguém vê, ninguém sabe o que os outros, mesmo ali ao lado sentem, pode ser uma multidão que ouve a mesma música, mas cada um recebe e vibra de forma individual. Sim, também no momento de entrega e prazer sexual, se partilham estes arquejares de tronco, de ressoares internos, é uma partilha, claro, mas é também e ainda assim insondável, ou não?
Há dias por ocasião da morte da Cassilda, vi escreverem-se mensagens sentidas de condolências, pouco sei a seu respeito, vi-a dançar perto de mim em várias ocasiões, não sei se era feliz aquela sua dança, aquele seu sorriso, aquele seu olhar, podiam ser catarses, podiam ser muitas coisas, não sei.
Sabemos verdadeiramente os outros? Assim mesmo, sem erro de semântica sabemo-los, tal como são?