Foto: Manuel Tavares
Os tios convidaram-nos, a mim e à prima F para passar uns dias em sua casa. Já lá tinha ido outras vezes, mas só de passagem, com a algazarra que fazem muitos, quando se juntam, e por essas alturas eu ainda via o mundo pelos olhos dos mais crescidos, por isso só tenho recortes de memória, lembro-me de picnics à beira do rio, de levarmos cestos de comida para a horta, de passarmos lá um pedaço do dia. Mas memórias a sério, minhas, construí-as quando fomos sozinhas, a prima e eu.
Os primos da casa não estavam, estariam a estudar fora, por essa altura. A casa dos tios era pequena vista da rua, colava-se à estrada, como todas as outras, a porta de madeira abria-se e no enfiamento da entrada havia um corredor que atravessava toda a casa, havia uma outra porta, que dava para o jardim, o sol perpassava por entre os vasos de plantas, projectava as folhas exóticas dos fetos no chão, e quando o vento soprava leve, havia cinema no pátio dos tios. Neste pátio havia várias portas, a da cozinha, a da salinha de costura da tia, e outras. Mas o grande deslumbramento desta casa era a escadaria de ferro que sustentava o chão de madeira, hoje sei que corresponderia a um estilo colonial, o ferro era trabalhado e um passadiço coberto servia de entrada a todos os quartos do andar cimeiro, era fascinante olhar de baixo e ver as ripas de madeira agarradas ao ferro.
O tio levou-nos ao rio, andamos de barco, um barco de madeira bicudo e com o fundo revestido a alcatrão. E lá de baixo, em cima daquele espelho de água bastava arrebitar o nariz para ver o casario que fazia extamente o mesmo zigzag que o rio fazia, aquilo intrigava-me, era apenas uma rua com casas de um lado e de outro que acompanhavam o rio. O sol já nos dava pelo joelho e a montanha com o seu casario fazia sombra em cima da água. O relógio da igreja badalava uma “Avé Avé” às horas certas, voltamos à margem, o tio prendeu o barco, e subimos em direcção a casa. Subimos muito, viemos desembocar mais ou menos em frente da casa dos tios, viramos para a direita e fomos até ao adro, com uns bancos cavados no muro de pedra, fechei os olhos e abri-os de repente, como se fosse uma máquina fotográfica, ouvi o barulho das minhas pálpebras e tive a certeza de fotografar aquele sítio, nunca mais o esqueci, podia descrevê-lo para um daqueles senhores que faz retratos robôs, bom talvez não, esses são retratistas, estiquei-me para a frente para ver melhor a barriga que as casas faziam ali, no mesmo lugar em que o rio fazia uma enseada, depois virei-me para trás e olhei lá para cima, encadeada pelas últimas pontadas do sol, consegui ver que o rio faz uma curva quase perfeita, quase, não é perfeita, mesmo, que a natureza não se disponibiliza por menos que a perfeição. Alinhei como pude o azimute para a serra atrás de mim, e lá estava o casario a descer, acompanhando a tal curva e a repor-se alinhada com o curso do rio. Claro, que virei uma e outra vez a cabeça, fechando e abrindo os olhos, para ver tudo a serpentear, com movimento, naquela altura não fiquei tonta, se fosse hoje a conversa seria outra.
O tio chamou-nos, que a tia já haveria de ter o jantar quase pronto, deixei a animação cinematográfica parar, e segui. Passamos à porta de uma capela, com dois degraus centrados, por aquela altura esta capela estava quase sempre fechada, mas naquele dia a porta estava encostada, o tio abriu-a e um bando de morcegos pequeninos esvoaçaram, como que a dizer-nos que não queriam ser incomodados, que já lá viviam há tempo suficiente, que não se chegava assim, à casa de ninguém, voaram de uma trave de madeira para a outra, o tio chamou “- Madrinha?!”, e algures lá do fundo, sem ser vista ouvimos a voz responder “- Quem vem?” seguiu-se o diálogo de quem éramos e ao que vínhamos, o tio quis mostrar-nos o lugar por onde tinha andado a tropa de Napoleão, aquando das invasões, e a forma como tinham deitado as figuras de pedra ao chão, sim, não tinham nariz, e com desprezo as escavaram nas costas para fazer de manjedouras para os cavalos. Agora estavam de pé, mas estavam amputadas, continuava a faltar-lhes a dignidade que o General Junot, lhes levou, às estátuas e aquela capela.
Apressem-se meninas, que a tia está à nossa espera, e enquanto os mais crescidos se despediam, corri novamente ao adro, só para ter a certeza de que se pudesse escolher um lugar no mundo para construir um baloiço, aquele seria o lugar.






