Cresci a ouvir imensas histórias sobre a vida antes do 25 de Abril. Poucas eram boas.
Pobreza, guerra, fome, falar baixinho ou mesmo calar entre muitos outros mimos são coisas que sempre associei a essa altura.
Ainda me lembro da minha avó falar da primeira vez que recebeu reforma. Não havia reforma, serviço nacional de saúde, os miúdos iam à escola sem qualquer obrigatoriedade e poucos seguiam os estudos após a quarta classe. Quando chegavam da escola, não se brincava, ia-se para a horta, ao mato, ajudar em casa. Ninguém fazia frente a um professor que era tratado como um Deus e a quem se levava oferendas variadas como cabritos ou coelhos. Em troca, agredia física e verbalmente os alunos que tivessem mais dificuldades de aprendizagem ou apenas porque podia.
Não digo que esta tivesse sido a realidade de toda a gente, mas acontecia. Muito. Pelo menos entre os meus.
Lembro-me de ouvir falar de uma guerra do ultramar, de madrinhas de guerra e de gente que fugia para outros países para não irem parar a Angola, Guiné ou Moçambique com uma arma na mão. O meu pai tem um álbum de fotos dessa altura, mas raramente falava disso. O meu padrinho perdeu um olho nessa guerra e veio de lá com traumas que o fizeram refugiar no álcool.
Lembro-me de ouvir falar de clubes de ricos, onde os meus não podiam entrar. Os privilegiados podiam tudo e rebaixar os menos afortunados fazia parte da manutenção desse privilégio. Rebaixar, controlar e manter tudo numa paz podre era obrigatório.
Ser mulher era não ter qualquer direito, era usar a sua existência para servir o homem. Todos os homens à sua volta. Pais, irmãos e maridos eram donos e senhores de tudo o que o futuro lhes trazia. Poucas ousavam fazer ouvir a sua voz e se o faziam sofriam consequências por parte da sociedade que precisava de as oprimir para prevalecer.
Cresci com estas histórias. Fazem parte do meu ADN. Bem sei que as ouvi por crescer no interior de Portugal, num meio rural e de poucas posses. Se tivesse crescido noutro lado com certeza que teria ouvido outras histórias, mas foram estas que me toldaram e me fizeram celebrar a data do 25 de Abril com muita gratidão e alegria.
Sem o 25 de Abril de 1974, o mais provável seria não ter continuado os meus estudos, não ter viajado, não ter a profissão que tenho hoje e muito menos ter a liberdade que usufruo no meu dia a dia.
Portanto foi com muita surpresa e desconfiança que comecei a ouvir recentemente dizer-se à boca cheia que antigamente é que era bom. A frase sai da boca de 50 deputados na Assembleia da República que representam muita gente com quem me cruzo diariamente, de muitos jovens que felizmente já não tiveram de viver nada daquilo e de inúmeros comentários que leio em comentários nas redes sociais.
Confesso que tudo o que vejo a acontecer à minha volta me assusta, acima de tudo este retrocesso. Esta intolerancia e conservadorismo bacoco. Este desdem pelos direitos fundamentais. O que achava serem dados adquiridos não o são e a história, afinal, não nos ensinou nada.
Portanto, arregacei as mangas e fui falar com as pessoas que viveram antes do 25 de Abril e pedi-lhes que me contem as suas histórias. Gravei essas histórias e estou a publicá-las num Podcast a que dei o nome de “No tempo da outra senhora”.
Já saíram 7 episódios e mais estão para vir. Pessoas anónimas que generosamente aceitaram falar sobre o seu passado, sobre a paz (ou a falta dela), o pão, a habitação, saúde e a educação – pilares da liberdade como diz a cantiga do Sérgio Godinho e que serve de mote a cada conversa.
Mulheres e homens e as suas vivências. A ideia é contar as histórias na primeira pessoa de forma simples e genuína. Comecei em Oleiros, mas quero chegar a vários sítios, pois cada localidade traz outras perspectivas, outras realidades e eu quero ser o mais abrangente possível.
Achei que devia isso aos meus e aos que lutaram por um país melhor.
E que fique bem claro: antigamente não era melhor, não! Ponto.
Sejam bem-vindos ao tempo da outra senhora: