Imagem: Pierart dou Tielt, 1340-1360 (Public Domain)
A pneumónica varreu ruas inteiras, havia um corrupio noturno de carroças a caminho do cemitério, o cangalheiro e o padre acompanhavam vários cadáveres, ao mesmo tempo, envoltos em panos, há muito que não havia caixões para tantos corpos.
As casas mais ou menos modestas fechavam-se umas a seguir às outras, quando o seu último habitante morria da maldita gripe. Por vezes os cortinados ondulavam esfarrapados pelo lado de fora das janelas, dias a fim, até que alguém se atrevesse a entrar, para retirar os mortos, já apodrecidos das camas ou enxergas onde jaziam.
Havia um cheiro a podre constante, no ar. Algumas famílias acendiam fogueiras junto aos lajeados das entradas das casas, acreditavam que assim mantinham os espíritos maléficos longe, através de antigos rituais de purificação pelo fumo e pelo fogo.
A vida em casa da avó da minha avó, seguia com a normalidade possível, dois dos rapazes tinham ingressado nas tropas que seguiram para ajudar na Guerra, estariam na Flandres. A matriarca aproveitara a ausência dos rapazes para uma grande limpeza aos seus aposentes, que envolvia desencher e encher com palha nova os colchões, encerar os soalhos de madeira, e fazer uma grande barrela aos linhos das camas que teimavam em amarelecer com o passar dos meses.
As meninas e as mulheres da casa revezavam-se no apoio aos doentes, havia salões térreos transformados em enfermarias, os tratamentos pouco mais eram que pachos colocados nas testas com o objetivo de fazer baixar as temperaturas corporais que nem se mediam, sabiam-se altas, apenas, e apaziguar as tosses, com várias infusões de ervas.
A barrela dos linhos exigia muito trabalho braçal, eram várias mulheres a caminho da ribeira, com as trouxas dos panos da casa assentes em rodilhas que equilibravam na cabeça. As pedras de esfregar estavam alinhadas com o curso da ribeira, quando faltavam os sulfatos branqueadores, usavam caganitas de galinha para o mesmo efeito, depois de bem batidos, e amassados nas pedras, eram abertos na água para deixarem sair todos os resíduos, a seguir juntavam-se duas a duas, espremiam-nos, e no final eram colocados sobre as ervas altas para secarem e corarem.
Ali sim, ficavam tão brancos quanto possível.
Da casa da avó da minha avó, que era uma casa de lavradores ricos, à época, já tinham saído vários metros de lençóis e estopas de linho que eram rasgados em pequenos panos para os tais pachos que se colocam nas testas dos doentes. Para além destes pequenos retalhos, a matriarca da família devota a Deus e muito consciente das suas obrigações tinha também dado instruções e terá a própria com duas das empregadas da casa feito uma grande seleção de mais tecidos que serviram para amortalhar muita miséria despida, por aqueles dias, enquanto se benzia e rogava a Deus e à Virgem que olhassem por todos.
Naquele dia uma das moças da casa, correu esbaforida desde o adro até à casa, e em
grande aflição lá conseguiu dizer:- Minha Senhora o Senhor Regedor vem aí traz dois homens com ele e vem confiscar os linhos da casa! Só no fim respirou.
A matriarca, decidiu recebê-los numa saleta no segundo andar da casa, ao cimo da grande escadaria, que por aqueles dias estava bastante desprovida de conforto, era ali que se passavam a ferro todos os tecidos da casa, havia um fogão sempre acesso, apesar da primavera cálida, de onde saíam as brasas para alimentar o ferro de engomar. Apenas uma cadeira, um banco pequeno de cortiça-mocho, uma grande pilha de lençóis já prontos a arrumar, uma mesa de madeira coberta com uma manta de fitas, que servia de tábua de passar e três arcas de enxoval, duas completamente vazias, a terceira tinha apenas alguns metros de linho endurecido e dois lençóis já transparentes de tão puídos que estavam.
Quando os três homens entraram na divisão, a matriarca estava sentada num equilíbrio difícil, as regras de cortesia que a avó da minha avó conhecia, praticava e ensinava aos da casa, consentiam que uma senhora não se levantasse para cumprimentar quem chegava, até aqui nada de estranho, a vénia era um cumprimento habitual dos cavalheiros às senhoras e assim aconteceu por parte do Senhor Regedor, que após apresentar as suas cortesias foi direto ao que o trazia ali: – Senhora D. Maria, encarrega-me Monsenhor da Silva Pereira que recolha todos os linhos, panos e lençóis das casas que serão enviados para a Comarca da Cidade. D. Maria respondeu: -Bem sabe o Senhor Regedor que nos últimos tempos entregamos vários metros de panos ao Senhor Doutor, para tratar os enfermos e outros tantos ao Senhor Prior para amortalhar os mortos, não nos resta nada mais que estes míseros panos que vê, acolá. Apontando para a arca que aberta deixa ver no fundo dois entremeios de renda agarrados ao tecido fino quase transparente. Com um aceno de cabeça do Regedor, um dos homens esvaziou a arca, sem grande esforço. Saíram os três, com um grande agradecimento do Regedor à bondade e generosidade da Senhora D. Maria.
Já os homens tinham saído pela porta grande, vieram duas das moças da casa apoiar em braços a avó da minha avó para que se levantasse do banco pequeno de cortiça, com mais de meio metro de altura de lençóis empilhados. Ajeitou o grande vestido preto com a saia tão rodada onde tinha podido esconder os linhos com os monogramas das meninas e dos meninos da casa e murmurou entre dentes: – Se nos levassem estes também, com que história se embalariam os sonhos?