Geral

Fora da Ordem

Seguimos por tempos difíceis. A democracia parece querer desaparecer do mundo e as razões são várias. Uns dizem que a história se repete, outros argumentam que não aprendemos com os erros e não sabemos fazer melhor (apesar de acharmos que o sabemos e o estamos a fazer).

As questões da economia atual, do propósito e paradoxos da comunicação, da filtragem de informação, das redes sociais e da sobrecarga do cérebro, ajudam a que a amálgama dos tempos modernos se transforme numa incerteza e até num receio do futuro. 

E era sobre tudo isto e muito mais que vos queria falar nesta crónica. No entanto ontem abri um livro que um querido amigo – o Ricardo – me deu na minha última viagem profissional ao Brasil (e sim, no trabalho fazem-se amigos!) – e deparei-me com este magnífico texto:

“A gente sentindo uma dorzinha na bexiga, num dia sem sol como este, não tem muita paciência com as coisas, não. É difícil aguentar quem faz sucesso, quem não faz, quem chove no molhado, quem toma ares seja lá do que for. A crucificação de Jesus está nos supermercados, pra quem queira ver. Quem não presta atenção está perdendo. Tem gente que compra imoral demais, com um olho muito guloso, se sungando na ponta dos pés, atochando o dedo nas coisas, pedindo abatimento, só de vício, a carteira estufada de dinheiro, enquanto uns amarelos desses, cujo único passeio é varejar armazéns, ficam olhando e engolindo em seco, comprando meios quilinhos das coisas mais ordinárias. Eu compro, culpada como um ladrão, o que também é imoral, eu sei disso. Saio carregando minha sacola feito se tivesse gatado ela escondido. Às vezes, eu tenho vontade de lembrar minha meninice: comprar arroz quebradinho, pra fazer engorduradinho numa panela que foi da minha mãe e tem a virtude de roxear o arroz. Nem isso eu posso fazer, se tem gente por perto. Iam me chamar de sovina e escândalo eu não quero dar, ia ser mal interpretada. Chega de tanta canseira e explicação, compro de primeira mesmo e vou comer sem alegria. O-vida, meu Deus. Pior é que eu já perdi a inocência para os partidos, então quando falam em ‘os estudantes’ ou ‘as donas de casa’ eu saio no meio do discurso, seja quem for, porque não acredito que a humanidade se salvará por uma de suas classes. Não quero ser governada por operários enfatuados, deslumbrados por terem a chave do cofre. Quero que me governe um homem bom e justo, que cuide para que chegando a noite todo mundo vá dormir cedo e cansado com tanto trabalho que tinha pra fazer e foi feito. Nem me importa se quem manda é rei vindo em linha direta de Salomão, mesmo sendo mais bonito, ou presidente ascendido das classes trabalhadoras. Tem quem aprecia mais o gado, outros já é lavoura, outros máquina de escrever. Eu gosto é de trem de ferro e liberdade. Ouero ter o gosto de tirar meu chapéu pras autoridades e destampar meu caldeirão esmaltado, com quatro variedades, todo santo dia. É disto que todo mundo precisa, fartura e respeito, autonomia pra fazer conta no armazém que quiser.
(….) Todo mundo tem que ter pra jejuar do seu. É disso que estou falando. Tou ficando velha, tou ficando nervosa, aflita com tanta ganância dos grandes e dos miúdos, com tanta perda de tempo e vaidade. Desde os começos a Lei do Amor está escrita, mas como está, tão simples, ninguém quer. Interpretam, interpretam e discriminam por cores, por fé, por raça, por sexo. Eu sou do que Deus fez, é mais seguro. Sou do partido do homem. Outro dia pediram minha cor política, eu falei meio entendendo, meio não, aproveitando pra me distrair um pouco: amarela. Como não quis ingressar me botaram sob suspeita. Eu vou dormir tranquila, porque fora esse namoro meu com trem de ferro, que se for preciso eu até deixo, gosto é só de ser gente, um da espécie “povo de Deus em marcha”. Aliás, Deus não inventou os mosteiros nem as casas de letras de modo que a nenhum deles eu me sinta fadada. Uns e outros são negócios dos homens, e às vezes só seus doces cuidados. O que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por este nome? Pois chamo eu que não sou hierática nem profética e temo descobrir a via alucinante: o modo poético de salvação. Eu tenho medo, porque transborda do meu entendimento. Já vi Ele me flertando na banca de cereais e na ‘gravata não-flamejante’ do ministro. Eu disse que a crucificação estava lá, mas, como veem, a ressurreição também. É complicadíssimo e, às vezes, tanto desejo do bem me faz pretensiosa. Eu me arrependo, eu entro na fila, eu dou meu nome, endereço, a data de nascimento, abro minha sacola de plástico pra receber a ração. Eu peço a Deus paciência pra fazer um vestido novo e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos, que pra uns é flor de trigo, pra outros nem comida é.”

Não tenho livros de versos (e gostaria), mas gosto de “trem de ferro e liberdade”.
E não conseguiria escrever nada hoje que me fizesse tanto sentido como partilhar este texto.

Nessa mesma viagem, em novembro último, e também por sugestão do Ricardo, eu e a Maria Manuel (a colega que também foi comigo nessa viagem), para preencher um final de dia até ao jantar, e porque estava a chover, aquelas chuvas fortes, tropicais, quentes, mas que nos impedem de passear, fomos ao cinema ver o filme “Ainda estou aqui”,  que relembra a história, mais recente do que imaginava, do Brasil e da sua ditadura. História baseada em factos reais, com uma interpretação majestosa da Fernanda Torres, recomendo muito que vejam, no cinema, se possível. 

Avisos.

Urge que nos avisemos uns aos outros. Que tomemos consciência. Que olhemos para o passado e quebremos padrões que permitam construir futuros que contrariem a história da história.
E é essa urgência que me fez partilhar tudo isto aqui hoje. Para que deixemos de estar “fora da ordem”.
Obrigada, Ricardo!

Autor

Tem uma adição desde que se conhece: a curiosidade. Adora viajar. E fá-lo muitas vezes, principalmente dentro da sua cabeça.