A música na Zona do Pinhal Interior Sul, no centro de Portugal, emerge de um território onde a identidade local foi moldada por práticas comunitárias, ofícios tradicionais e uma relação intensa com a paisagem florestal.
Ou, pelo menos, é assim que gostamos de a imaginar…
Observemos este cacho de medronhos – aqui com a função de tira-sabor – e comecemos do início.

Na primeira metade do século XX, assim que a tecnologia o permitiu, iniciaram-se os registos sonoros das músicas dos povos, um fenómeno que ocorreu em várias partes do mundo, incluindo Portugal. No entanto, Oleiros não teve a mesma sorte de alguns concelhos vizinhos, onde foram feitas gravações que hoje permitem preservar parte da memória musical local. O mais próximo que se conhece desse esforço aconteceu em 1939, no Outeiro da Sertã, a pouco mais de 30 km de Oleiros, quando Armando Leça realizou registos sonoros da região. Eis as canções ali recolhidas, existentes no arquivo da RTP em fita magnética:
- Azeitona por ser preta — coro misto a capella.
- Vira — canção bailada, sem instrumentos; as “cantigas” são cantadas por coro feminino e o refrão por coro misto.
- Olha a laranjinha — dança de roda, com coro feminino nas cantigas e misto no refrão.
- Enleio — dança de roda, cantada por coro misto.
O pouco material disponível é, sem dúvida, uma preciosidade, mas é também uma fonte de problemas. Sendo escassos os registos dessa época, surge a tendência natural de generalizar, como se esta fosse a única forma que a música sempre teve na região. Mas essa ideia de fixação não se aplica apenas ao que temos documentado. Existe também uma forte tendência de olharmos para a música do passado como algo cristalizado, como se tivesse permanecido imutável ao longo do tempo, pronto para ser arquivado numa gravação ou partitura sem perder a sua autenticidade. No entanto, a música – tal como qualquer tradição – nunca foi estática. É uma construção social em constante negociação, moldada pelo contexto em que é praticada (Appadurai, 1996). No caso de Oleiros, essa ilusão de cristalização torna-se ainda mais evidente, pois simplesmente não há registos. E é aqui que surge uma questão importante: a ausência de registos significa que a música não existia? Claro que não! Ainda não encontrámos qualquer povo ou civilização sem música (Blacking, 1973). A música esteve sempre presente – nas festas, no trabalho, no convívio. Mas, ao não ser documentada, surge uma sensação de vazio, como se nunca tivesse existido uma tradição musical local. O que na realidade acontece é que aquilo que foi registado noutras regiões sobrevive como “música tradicional”, enquanto aquilo que não foi fixado permanece esquecido, apesar de ter sido igualmente vivido, partilhado e transformado ao longo do tempo.
Bem, ou isso, ou este vazio acaba por ser preenchido pelos registos e ideias das músicas mais próximas – provavelmente as canções cantadas no Outeiro da Sertã seriam também cantadas em Oleiros… Talvez haja alguma legitimidade para avançar com esta conclusão, mas admita-se, é uma narrativa e uma interpretação um pouco ousada. Afinal, com tão poucos registos disponíveis (e provavelmente feitos num só um dia, por Armando Leça), o que nos impede de imaginar que a música local fosse afinal completamente diferente? (Que são dados insuficientes ninguém duvida.)
Aqui, importa clarificar de que música falo. Que vazios e generalizações estão em causa? Refiro-me às práticas musicais enraizadas na oralidade e no quotidiano da comunidade, que julgo ser importante distinguir do surgimento das filarmónicas (enquanto fenómeno organizativo de notável sucesso a nível nacional) e do processo de folclorização, que, sobretudo a partir do século XX, levou repertórios para os palcos e para grupos organizados, muitas vezes através de adaptações que lhes conferiram uma nova identidade. Não é destes últimos que aqui falo. Não se trata de perguntar se houve um grupo organizado que salvaguardou um conjunto de músicas, mas sim de perceber qual a música popular em Oleiros (anterior à sobreposição musical promovida pelo regime do Estado Novo) que foi praticada, sem que alguém a tivesse registado para memória futura.
Voltando à transformação das práticas ao longo do tempo, as tradições são, na verdade, processos em movimento. Aquilo a que chamamos “música tradicional” hoje é apenas um recorte de um fluxo muito maior. Ao contrário do que muitas vezes pensamos, a tradição não é o que sobrevive porque resistiu à mudança – é o que sobrevive porque foi sendo reinventado, porque encontrou novas formas de continuar a fazer sentido para as pessoas.
É que o ser humano tende a fixar a tradição num ponto fixo, mas as práticas culturais são construções dinâmicas, moldadas por interações entre forças globais e locais. Não sou eu que o concluo, é Appadurai (já citado acima), um dos nomes mais recentes nas minhas leituras. A tradição é um processo contínuo de negociação e transformação, e não algo imutável. Preservar e compreender a necessidade de preservação é uma coisa; classificar e criar modelos de conhecimento sobre essas preservações e registos é algo completamente distinto. E é também aqui que, novamente, surgem mais problemas.
E o que não foi preservado? Podemos realmente tirar conclusões apenas com aquilo que temos arquivado? A Zona do Pinhal Interior Sul, por exemplo, onde a música e as práticas culturais não foram tão amplamente registadas como em outras regiões, ilustra bem o impacto que o processo de arquivamento tem sobre a nossa compreensão do passado. O material arquivado, quando tratado de forma a representar um ponto fixo no tempo, corre o risco de ser usado para fazer generalizações que nem sempre correspondem à complexidade das práticas vivas. Mais ainda, o modo como os registos são feitos – seja pela escolha do que é gravado, pela forma como as interpretações dos cantadores e músicos são moldadas diante da camara ou do microfone, ou até pela visão do etnógrafo que conduz o processo (sabemos que Giacometti chegou a pedir às suas “velhinhas” que cantassem de certas maneiras porque seria mais bonito!) – pode influenciar a maneira como os grupos e as suas músicas são representados e consequentemente a autenticidade do material. Precisamos – sobretudo nos casos como o de Oleiros – de questionar, não apenas o que é preservado, mas também o poder que esses registos têm sobre as narrativas que construímos e as tradições que pensamos conhecer.
Se quisermos realmente falar sobre a música em Oleiros no início do século XX, talvez não tenhamos muitos elementos sonoros para nos apoiar e nunca consigamos recuperá-la tal como era. No entanto, podemos tentar compreender o seu lugar na identidade da região e perceber como a sua ausência, ou os vestígios que restam nas vozes dos mais velhos, continuam a influenciar o presente.
Podemos, ainda, contribuir para que a música, seja ela qual for, continue a existir de alguma forma, em vez de ficarmos presos à ideia de que o que não foi gravado perdeu o seu valor. Afinal, se a música nunca foi fixa, por que razão haveríamos de tratá-la como se fosse?
E afinal, a música, mesmo quando esquecida, continua presente nos gestos, nas memórias e no som das paisagens que inspiraram as vozes do passado.
Referências:
1. Blacking, J. (1973). How musical is man? University of Washington Press.
2. Sardinha, J. A. (1992). Armando Leça e o primeiro levantamento músico-popular realizado em Portugal. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.
3. Appadurai, A. (1996). Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. University of Minnesota Press.
O meu caminho até à Etnomusicologia foi impulsionado por uma curiosidade instintiva, que me levou a tentar saber mais sobre o papel das diferentes músicas, a compor com base na minha curiosidade sobre os lugares e, mais recentemente, a explorar de forma mais estruturada, Etnomusicologia no Mestrado em Música da Universidade de Aveiro.