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Os príncipes não nascem todos em berço de ouro

A 20 de novembro de 1959 as Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos da Criança, como em tudo na vida, é sempre melhor ter um elenco norteador e tendencialmente universalista do que devem ser os direitos a assegurar às crianças, do que não ter nada. A legislação é um ato bondoso, necessário e normativo para a sociedade mas tantas vezes fica esvaziado de conteúdo e não é ponto assente para todos.

Não vou falar da minha infância feliz, que me perdura pela vida, nem da dos meus filhos, que me esforço em conjunto com o pai e com todos os que nos rodeiam para que da mesma maneira lhes dure toda a vida.

Hoje escrevo para partilhar convosco, que os abraços mais profundos, fortes e sinceros (ou talvez não, já volto aqui, para concretizar melhor) que recebi de braços pequeninos, me chegaram de quem eu não dei à luz. Durante um período da minha vida fiz voluntariado presencial numa associação que acolhe crianças e menores em risco, foi uma experiência e tanto, ali, naquela casa onde se pretende replicar uma família, acolhem-se crianças a quem os tais direitos não estão assegurados, onde quem devia cuidar e proteger, falhou. Enquanto os técnicos trabalham junto das suas famílias na tentativa de os recuperarem e capacitarem para serem isso mesmo uma família. Ali tentamos todos, como numa equipa, somar-lhes instantes felizes, que eles possam levar pela vida fora.

As vidas daquelas crianças ficam em suspenso durante um ano, período de tempo que se estabelece por ordem do Tribunal para a reabilitação da família, durante esse período, ali, naquela casa, tenta-se normalizar o que não é normal: que se insiram numa casa com muitos irmãos, ou primos, que se deixem cuidar por outros adultos que não lhes são referentes, é uma tarefa penosa, mas hercúlea e carregada de mérito para quem a desenvolve.

Quando ali chegam os Manéis e as Marias, chegam frágeis, vulneráveis, assustados, magoados, ninguém ali chega para passar férias! Nada, ou quase nada do que vem elencado na Declaração Universal dos Direitos da Criança lhes está assegurado ou garantido. Chegados ali já muitos lhes falharam, os seus principais já lhes falharam. Cada um tem a sua história, o seu passado, alguns deles ainda nos chegam aos braços, são bebés de colo, outros são já meninos e meninas crescidos, cada um deles traz consigo uma bagagem pesada demais. Vi ali histórias que nem nos meus piores pesadelos pensei que pudessem acontecer.

Hoje, como em quase todos os dias da criança é para eles que vai o meu pensamento, foge-me sem eu querer, e vai sempre ter com os sorrisos deles, com os tais abraços fortes mas que talvez não sejam tão sinceros assim, e explico-me agora melhor: são sinceros no carinho na intensidade, na arrebatação, mas não são desinteressados, fazem parte de uma estratégia de sobrevivência que se desenvolve à medida que se acumulam as carências. Há naqueles abraços e beijos sugados uma vontade que alguém os resgate, que alguém os salve, que alguém lhes baste, e a mim, apetece-me sempre abrir os braços e trazê-los a todos comigo, para lhes somar muitos minutos às horas felizes da vida, como deveria ser com todas as crianças!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.