Aiiiii! Ao descer da cama, o meu pé encontra – milisegundos mais cedo que o chão – a mais bicuda das peças de Lego alguma vez fabricadas. Este recuperar explosivo de consciência matinal, normalmente lento e sofrido, atinge agora uma velocidade record por conta do cocktail de bio-químicos que o corpo produz para fugir às feras da savana. Não há feras no quarto – ou talvez haja, talvez eu, um indivíduo tanto ou quanto enfurecido a esbravejar para dentro, num nevoeiro de melatonina.
Cinco e meia, hora de inverno, escuro como breu e nenhuma ponta de sangue no pé, tanto quanto aferiram automaticamente as pontas dos meus dedos das mãos… A adrenalina tirou-me a fome do costume e, provavelmente, também a lembrança do que me terá acordado. Sem pensar na minha rotina matinal sento-me no sofá, diante da televisão completamente negra. Ligo a luz amarela do candeeiro de pé alto e abro um livro, começo a ler. Inicialmente faço-o por falta de opções, mas, no silêncio da hora, logo me deixo mergulhar naquele mundo diferente do meu.
…
Visto de fora, o rio parecia nem ter corrente, tal era a massa de água e a largura do leito espelhado. Mas eu sentia o movimento do caudal enquanto tentava nadar para chegar à margem. Estava mais ou menos a meio e acabara de decidir dirigir-me para o lado mais iluminado, deixando o sol nas costas. Não vejo ninguém, nem qualquer pista de civilização: nem uma casa, uma estrada, um caminho… nada. Não que eu tivesse muito tempo para observar a paisagem enquanto nadava ofegante, mas tentava encontrar pistas para escolher um rumo e uma saída.
Nadava, sem saber como fui ali parar.
Lancei um grunhido irritado, misturado com um ar de alívio, ao encontrar solo firme, rebolo-me para a margem e acabo voltado para cima, encandeado pela cegueira branca do sol. Alívio, frio, medo… Alívio – tratemos uma coisa de cada vez. Este estado de espírito durou apenas um pequeno instante. Não me chego a assustar, mas reajo ao que sinto na minha pele… a língua quente dum cão – digo apenas “quente” porque molhado já eu estava e quente era o único adjectivo novo… Abana o rabo, aparentemente contente por me ver. Tento dizer-lhe “olá” mas é ele o primeiro a falar:
– Olá, rapaz, falas Esperanto?
Nunca soube de animais que falassem! Tento exprimir o meu absoluto espanto e faltam-me as palavras, fico preso e não sei como me manifestar, ou como identificar ao certo aquilo que me invade o espírito. Se este momento parar e me permitir observar o que me envolve, percebo que o mundo é um lugar enigmático, mas nem por isso tal facto me gera grande inquietude. A consciência de mim mesmo parece algo primitiva, algo bastante mais primário do que a primeira pessoa da narração que é dada ao leitor neste momento.
Amigo leitor, agora que aquilo que descrevo já passou, posso dizer-lhe: eu não sabia falar, nem sequer sabia o que é falar. Eu era uma cobra. Uma linda cobra, com uma linda pele, tatuada com padrões aztecas e cores tropicais. O rio é o Zêzere – isso sei bem – ali numa das últimas curvas antes de chegar à ponte de Álvaro. Mas não vejo qualquer povoação – nem sei o que isso é. Mas esperem, o rio também é um pouco mais escuro e se o olharmos bem, por debaixo dos reflexos da superfície da água, esconde-se um mundo de ruínas majestosas com casas, ruas, palácios e civilizações inteiras. Qual Atlântida! Um mundo digno de se ver, de uma escala impossível de se imaginar acordado. Um maravilhoso manjar de surrealismo. Um mundo estupidamente hiperbólico como só o nosso cérebro consegue conceber durante os sonhos. Não soube mais nada do cão, não sei o que aconteceu à cobra – que era eu mesmo. Já ouvi um cão a falar. Não me interessa se foi a sonhar.