Crónica Geral

Saudades de Ruralidades

Artigo também disponível em áudio, narrado pelo autor.

Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite.”

Miguel Torga, in Um Reino Maravilhoso

Manhã de Inverno. Os campos amanheceram cobertos pelo manto branco da geada que o sol até ao meio dia vai custar a desfazer. Geada e frio por todo o lado. 

Um homem poisa junto da taverna da esquina com o seu casaco escuro pelos ombros, calças de tecido grosso de sarrobeque e botas altas degastadas pelo tempo. 

Os transeuntes pisam as pedras roladas, e embebidas, da calçada da vila. O homem fixa o olhar nos seres ambulantes, numa espécie de encantamento abstrato, esperando que alguma alma caridosa o convide para “o mata bicho”, um singelo copinho de aguardente. O dito aqueceria o corpo e a alma consabido que o frio enregelado matinal é intenso e importa preparar o corpo e os braços para o dia imensamente longo de trabalho que poderá ser nas courelas, nos coutos, nas hortas, nas banquetas ou na floresta erguendo molhos de caruma, urze, tojo, carqueja e mato com uma roçadoura de gume recurvado. 

Os tanques, os poços e os ribeiros estão repletos de grossa vidraça de gelo. O frio enrija a carne e os dentes. Os ditos tilintam. A Ribeira Grande vai basta tal e qual como a da Lontreira, os Ribeiros: das Hortas; das Sesmarias; e do Peso. Há longos lençóis de água com fartura e enchentes por todo o lado. Estamos num dos invernos intensos: de lareira, de jogos de cartas e de borralho. As cheias recentes foram céleres e provocaram alterações aos chãos fertilizados de esterco curtido nos currais. As terras abalaram até Deus sabe onde! 

Os regatos estão belos, fartos e sussurrantes qual orquestra sinfónica afinada e melancólica.

Os dias estão a correr gélidos. Alimenta-se o fogo para que os lares incandesçam o corpo e a alma, mas também para aquecer o caniço, o fumeiro, a vianda e a sopa. Descascam-se as batatas, fervem-se as águas nas panelas de ferro que estão equilibradas sobre as trempes negras com o lume forte das torgas. Com a adição de legumes os aromas fortes, intensos e quentes das couves com feijões, com o toque da morcela, aguçam o apetite, adiante …

Passa a invernia. Logo que o tempo permita, ou a terra enxugue, iniciam-se os trabalhos agrícolas. As terras moldam-se de verde e de vida. As videiras trepam pelas latadas e pelas árvores. Cobre-se a serrada com varas de pinheiro que servem de suporte às parreiras, que ali agora podem adormecer. Começa a poda. Esta arte ancestral era acompanhada pela tesoura, rafia, martelo, pregos e varas resinosas previamente colhidas no pinhal. Todo este empenho era fundamental para uma boa colheita e vindima. O meu pai ensina-me esta arte de antanho alertando-me para o corte, sempre depois do 2.º nó. Coloca a haste bem direitinha e bem apertada, e cautela! Neste ínterim deita ao lume um molho de vides, com isqueiro sem licença ou clandestino. Surgem as incandescentes brasas. Sentámo-nos junto delas num improvisado banco, uma pedra recolhida de uma banqueta ali ao lado. Do cabaz de verga salta uma sublime chouriça magra, um queijo e do garrafão empalhado, seu companheiro prestimoso, um delicioso néctar de vinho “parreirinho” feito de bica aberta. Com uma navalha de foice o meu pai cortou, e repartiu, delgadas fatias de pão de milho doirado. Mastigamos lentamente, com a alegria no olhar e expressão nos fraternos lábios sob o mirar atento da passarada vizinha. 

Aqui, os campos verdes na primavera estão sempre sublimes. Vimos gerar a vida das plantas ao nosso singelo ver. As terras cobrem-se de ervas e malmequeres. Um perfume intenso de fragrância única percorre os vales e as terras que em breve serão rasgadas pelo arado de pau ou séga ou meixilho relha, puxado pela canga da parelha de bois ou da mula. Com esta intromissão animal voltam a mostrar o seu ventre e aquela cor ímpar castanha. Depois serão alisadas pela grade pois, em breve, voltarão a germinar vegetais. É a lei da vida! 

Nas vinhas sulfata-se e enxofra-se com aquelas máquinas manuais com depósito de cobre e sistema de fole. 

No ar eleva-se um odor intenso de fumo resultante das borralheiras, queimas dos resíduos das terras, que se casa com o cheiro dos pinhais onde vislumbramos, aqui e acolá, as flores de esteva, as agulhas esguias dos pinheiros e as pinhas. 

As rãs coaxam nos ribeiros. Os melros andam na azáfama de desviar alguns grãos de milho recentemente plantados obrigando-nos à feitura dos criativos espantalhos. Que belas obras práticas de engenho e arte! 

Os gaios imitam os sons de outras aves. 

É a natureza na força do seu esplendor primaveril. 

Pelo raiar da aurora e pelo cair da tarde, de mansinho, a picota ou burra de madeira, tira a água das ribeiras e dos poços. Vejo outros a utilizar as rodas de tirar água, de ferro ou de madeira, com alcatruzes de barro ou de lata ou folha de zinco. Homens e mulheres artificiosos alcandoram-se sobre elas e movem-nas com os seus pés. Com essa água recolhida pelo engenho rega-se as leiras do milho, as batatas, os feijões, os tomates, os pimentos, os pepinos, as cebolas e as couves. Nos pinhais do Dom Vicente, das Sesmarias, do Ribeiro da Hortas, das Adiegas e da Corgalta homens com serras de folha larga cortam os pinhais, fazem a faxina e os resineiros, ali paredes meias, colhem as bicas nos púcaros sempre num vaivém de vales e encostas, num perpétuo movimento. 

Tudo vibra com as canseiras das colheitas da floresta e dos campos agrícolas. 

Muito suor, alegrias e duro trabalho. 

São estes sítios, sensibilidades e recordações que criam em nós uma sólida vontade de conservar as nossas raízes e que tornam a nossa terra num lugar impar, num sítio único.  

Autor

Gosta: de sopa de couves e feijão; de cousas simples; da mãe natureza e de fazer feliz o outro!