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Nos 50 anos de abril, ainda por fazer!

Por Fernando Freire 

– Dedicado aos meus amigos resineiros –

“Eu estava nesta manifestação. Estava encostado à parede onde hoje é o Infantário. Não sei o dia, mas foi logo a seguir ao 25 de abril de 1974. Foi num domingo. Vieram uns tipos de Castelo Branco, pertencentes a vários partidos, maioritariamente de esquerda, para substituir a presidência da câmara municipal - o presidente era o sr. Alfredo Fernandes. Alguns desses indivíduos discursaram na varanda da câmara, onde hoje é a Casa da Cultura. A partir daqui passou a haver uma comissão administrativa, presidida pela D. Guiomar Romão, até às primeiras eleições autárquicas. [Testemunho de Augusto Matos]. 
Ao centro da fotografia reconhece-se a D. Guilhermina; Maria do Carmo, mãe do Augusto Garcia dos Santos; Luís Filipe, da Amieira.

Em termos de enquadramento histórico importa visitar o ano 1945. 

Portugal foi o Estado da Europa, detentor de colónias, que mais tarde procedeu à descolonização e só veio a fazê-lo em resultado da revolução de abril de 1974, ao contrário de outras grandes potências como a Grã-Bretanha, a Espanha, a França, a Bélgica e a Holanda. Essa demora em acompanhar o movimento que se começou a impor logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial deveu-se a vários fatores: “ I – natureza meramente política – uma ditadura que teve a principio o apoio da Grã-Bretanha e USA, que se refletiu na criação da NATO e que quis envolver a manutenção das colónias na luta anticomunista e que depois, paulatinamente, veio a perdeu peso; II – natureza económica – conceção liberal que perdido o Brasil os nossos territórios ultramarinos seriam o sustento de Portugal; III – carácter histórico – apelo à memória do pioneirismo dos Descobrimentos e por esta via a visão de uma grande potência europeia. Com um elevado número de analfabetos o ensino reforçava o sentimento nacionalista e do Império”. (1)

Nesse ano de 1945 era aprovada a Carta das Nações Unidas, que Portugal subscreveu. Determinava o seu art.º 73.º “Os Membros das Nações Unidas que tenham ou assumam a responsabilidade de administrar territórios cujos povos ainda não tenham alcançado a plenitude de um governo próprio, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios estão acima de tudo, aceitam como um encargo sagrado a obrigação de promover, em tudo o que lhes for possível, (…): a) assegurar (…) o seu desenvolvimento político, económico, social e educativo, (…); b) desenvolver o seu próprio governo, a ter em devida conta as aspirações políticas dos povos e a ajudá-los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres, de acordo com as especificidades de cada território, dos seus povos e dos seus diferentes graus de evolução …”.

Portugal subscrevia a Carta, mas nunca lhe deu execução o que provocou o seu afastamento politico dos países europeus democráticos e dos USA. 

Interessava ao regime propagandear a ideia de tolerância a nível externo tentando convencer a opinião internacional que que havia liberdade em Portugal e nas Colónias, e que as eleições, segundo Salazar, seriam “tão livres como na livre Inglaterra”. (2)

E por isso contava com grandes manifestações do povo, genuínas …

Todavia, ao contrário do o seu verbo, a ditadura cerrava fileiras, proibia eventos, e espetáculos tentando controlar todo o processo social e político.   

Assegurando nos lugares chave das vilas e aldeias pessoas da sua confiança política.

Limitando a circulação de documentos e perseguindo os oposicionistas ao regime.  

O regime em 1949 quer eleger o Marechal António Óscar Carmona e evitar a eleição do General Norton de Matos que não lhe oferecia garantias para a prossecução da sua politica fascista. Nesta eleição, para a presidência da República, o Estado Novo durante a campanha dilatou as repressões, sonegou o direito de reunião, vedou a liberdade de opinião, calou a imprensa, controlou a movimentação de pessoas e instruiu os seus apaniguados.   

Certo que Norton de Matos, ainda assim, conseguiu promover grandes manifestações de apoio popular, em Évora, Beja e Porto. Falou-se em cerca de 100 mil apoiantes, no comício da Fonte da Moura, mas travava uma luta inglória num regime de opressão de corte de raiz do pensamento. 

O Governo criou toda a espécie de entraves às ações de campanha da oposição, desde proibições, prisões, passando por sabotagens e controlo de pessoas e ideais.  

O mesmo aconteceu em 1958, nas eleições presidenciais. O “general sem medo”, Humberto Delgado, surgiu como o candidato que congregou todas as oposições ao regime do Estado Novo. A ele se deve a célebre frase, “obviamente, demito-o!”, resposta que deu quando foi questionado – numa conferência de imprensa – sobre o futuro do Governo de Oliveira Salazar, caso fosse eleito.

Com uma campanha viva que palmilhou o país o General assustou de sobremaneira o regime. 

Certo que Humberto Delgado não foi eleito segundo “a contagem do regime”, mas amedrontou-o. Sabemos que a oposição acusou o regime de logro na contagem das mesas eleitorais, mas nunca saberemos, porque não sindicadas por entidades imparciais, se a votação refletiu a vontade de um povo.

Sabemos, sim, que o regime o assassinou … 

E que documentos SECRETOS entre a administração do Estado era prática corrente.  

Com uma capacidade persuasiva, educadora e com mão de ferro a ditadura viveu, sobreviveu até cair de madura!

Em último rácio a polícia politica fazia a sua aparição de forma punitiva, castigando o que era considerado prevaricador, desencorajando possíveis veleidades de outros atos de desobediência, instalando o medo e convidando ao silêncio e à resignação. (3) 

Contava o meu falecido pai que aquando de uma visita do Governador Civil a Oleiros, a Praça da República encontrava-se “à pinha”. Uma vibrante e apoteótica demonstração pública, clamorosa e impressionante do “Estado Novo”!  Manifestação de agradecimento, de apoio a Salazar, ao seu regime e ao seu representante distrital, o Governador Civil de Castelo Branco. Traduzia aquele evento a fé, a confiança, o sincero e comovido agradecimento das gentes carentes de Oleiros por tudo o que Salazar tinha feito e estaria pronto a fazer, pelas famílias, pelos filhos e pela Pátria. 

Cumpriam, portanto, o dever de elevar bem alto as vozes para que elas ressoassem através dos montes e dos vales das serras da Lontreira e de Alvelos, por toda a parte e por todos os recantos do Império, gritando: “… Viva o Governador Civil! Viva Salazar! Viva Portugal!”

O meu pai, António Freire, analfabeto, mineiro, cavador, serrador, e outros ofícios dignos como quaisquer outras profissões sem direitos, imobilizado junto do café da Ti Celeste grita: 

– Viva os Pobres!

Ai Jesus! O que foi ele dizer. Teve de ser recolhido, de emergência, por amigos, também pobres como ele, para o interior do café, pois tinha colocado em crise toda a glorificação daquele ato. 

Certo é que lhe valeu um rigoroso inquérito junto das autoridades que ele sempre se absteve de falar. 

Nos anos sessenta lembro-me, como se fosse hoje, que pela penumbra da noite o meu pai sintonizava a sua telefonia azul, da cor do céu, em onda curta. Escutava, diariamente, as emissoras clandestinas da “BBC”, da “Voz da América” e da “Voz da Alemanha”. 

O seu compadre Zé Perlegas, pai do Augusto Garcia dos Santos, nos longos serões do jogo de cartas, junto da lareira e em tempos de invernos chuvosos, bem o aconselhava para ter cuidado. Debalde. 

Apesar do risco gostava de obter informações fidedignas sobre acontecimentos nacionais, da guerra colonial e outras informações que o regime ocultava e reprimia. 

Memoro a sua alegria aquando das primeiras eleições, às quais não faltou, (veio a falecer muito cedo, em 1979) exercendo sempre o seu direito de cidadania. 

Nunca me contou a questão do inquérito da PIDE, só contava a primeira parte, aquela que eu sempre lembrarei – o seu lema – “Viva os Pobres!”.   

A troca de informações entre o Ministério do Interior, o Governador Civil e os presidentes das Câmaras eram uma constante. 

Desde o singelo cargo público, da GNR, PSP, militar, à lista para qualquer associação ou coletividade tudo era sindicado, avaliado e selecionado. 

Frequentemente existiam os inquéritos, como este por exemplo:

Outrossim, até em reuniões em espaços mais reservados era sempre exercido, por alguém, um controle sobre as afirmações ou convicções dos presentes. 

Atualmente, todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação a todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico.

Se o direito de reunião era manifestamente sonegado também o direito a votar o era. 

A Constituição de 1911 e a Lei de 14 de março do mesmo ano estipulavam que eram eleitores os cidadãos portugueses maiores de 21 anos, residentes em território nacional e que soubessem ler ou escrever ou fossem chefes de família. (Existia um elevado número de analfabetos pois o Estado que não lhe dava as mínimas condições para frequentarem a escola). 

Também eram excluídos os militares com a categoria de praças de pré em serviço efetivo, os indigentes e todos os que não possuíssem meios próprios para a sua subsistência, os pronunciados com trânsito julgado, os interditos, por sentença, da administração da sua pessoa ou bens, os falidos não reabilitados e os incapazes de eleger por efeito de sentença penal e os portugueses naturalizados.

Mais tarde, por decreto de 5 de maio de 1931, foi consagrado que algumas mulheres, só as maiores de 21 anos de idade que fossem chefes de família, as viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens com família própria (diminutos casos), e as casadas cujos maridos estivessem ausentes nas colónias ou estrangeiro) tinham direito a voto. 

Todas as atividades de pessoas e associações eram vigiadas pelos agentes da PIDE/ DGS, criada a 22 de outubro de 1945 cuja função era perseguir, prender e interrogar qualquer individuo que fosse visto como inimigo do regime. Em Oleiros tanto era vigiado o Grupo Desportivo Oleirense, também conhecido por o “Clube dos pobres” como o “Clube dos ricos”, dotado de um bilhar e mesas para jogo de cartas, com sede na Quelha, assim designado por ter sido fundado e convivido por figuras salientes da vila. 

A transformação social e a contestação ao regime tiveram como protagonista principal o partido comunista (PCP).

A censura no anterior regime colocou-se fundamentalmente em relação à imprensa através do Decreto n.º 12 008, aprovado após o golpe militar de 1926. Esta foi alvo de condicionamentos, nomeadamente através da instituição da censura prévia como instrumento de controlo da opinião pública e de defesa dos valores políticos, sociais e morais do poder proibindo a venda ou divulgação de “cartazes, anúncios, avisos e em geral quaisquer impressos, manuscritos, desenhos ou publicações que contenham ultraje às instituições republicanas ou injúria, difamação ou ameaça contra o Presidente da República, no exercício das suas funções ou fora dele, ou que aconselhem, instiguem ou provoquem os cidadãos portugueses a faltar ao cumprimento dos seus deveres militares, ou ao cometimento de atos atentatórios da integridade e independência da Pátria, ou contenham boato ou informação capazes de alarmar o espírito público ou de causar prejuízo ao Estado, ou que contenham afirmação ofensiva da dignidade ou as do decoro nacional. Em 1933, através do Decreto n.º 22 469, foi instituída a censura prévia também às publicações não periódicas que versassem “assuntos de carácter político ou social de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum.”

A PIDE/DGS também dirigia a censura através do seu “lápis azul”, uma vez que todos os artigos de imprensa e obras de arte – literatura, teatro, cinema, artes plásticas -, eram cortados, editados ou proibidos com um lápis azul antes de serem publicados.

A distribuição de panfletos ou impressos clandestinos eram campanhas subversivas aos olhos do regime.

Os governadores civis distribuíam pelas Câmaras as seguintes mensagens: 

1. Os Presidentes e Vice-presidentes das Câmaras com o Presidente da Comissão Concelhia da União Nacional constituindo o núcleo principal orientador devem empregar a sua ação de maneira a que os seus esforços coordenados tenham o melhor rendimento. Para o efeito nas reuniões das Comissões da União Nacional – em sessão permanente devem ser assistidas sempre daquelas autoridades além das pessoas que aquele organismo julgar conveniente que com aquele colaborem em multiplicação indispensável de esforços. 

2. A ação julgada mais eficaz talvez mesmo a única eficaz a que se exerça directa, pessoale continuadamente pelas pessoas de confiança política e de reconhecida influência junto de cada eleitor. 

Não é difícil à União Nacional promover desde já uma reunião das pessoas nestas condições, que por sua vez agregariam, cada uma, um número pequeno de pessoas, suas amigas; numa nova reunião estando dá todas estas pessoas seriam divididos por cada um dos presentes, os eleitores, de modo a que todos fossem abordados e elucidados por quem o pudesse fazer com melhores condições. 

Não esquecer a influência importantíssima das mulheres.  

3. Por este modo até se poderia assegurar a comparência a uma futura sessão pública de numerosos eleitores, sessão que V. Ex.ª de acordo com o Presidente da União Nacional, indicará a este Governo Civil, quando convirá que se realize, aproveitando sendo possível, a inauguração dos melhoramentos locais. 

Desejo estar no facto ao andamento dos trabalhos pelo que solicito de V. Ex. me informe do que se for passando no nosso campo e no adversário. 

4. Se em qualquer reunião for julgada necessária a minha presença ou de alguém de Comissão Distrital V. Exa., comunicar-mo-á, para eu dispor as coisas nesso sentido. 

5. Mesmo nas povoações, felizmente raras, onde se proveja estarmos em minoria, as pessoas Situação não podem deixar do trabalhar porque o que conta é o total dos votos em todo o País. 

6. Chamo desde já a atenção do V. Ex. para a nomeação das Mesas das Assembleias Eleitorais que devem ser constituídas por pessoas que conheçam a lei eleitoral e com desembaraço para poderem usar do todo o sou poder legal a fim do não haver perturbações. 

7. A titulo da prevenção informo V. Ex. que num concelho do Distrito acaba de passar o seguinte na eleição da direção da Sopa dos Pobres: Foi apresentada com antecedência pola direção cessante uma lista dos novos diretores, apolítica – contra a espectativa das pessoas da Situação que estavam suspeitosas do que haveria manobra política dos adversários da Situação. 

Porque do nosso lado só entendo que não deve haver senão a politica do Bom dentro destas instituições, foi aceite essa lista a não houve interesse especial pela eleição.

Assim os adversários políticos cavilosamente puderam à última há fazer substituir a lista primitiva por outra de adeptos seus que apareceu eleita por surpresa.

Se todos nos convencermos de que “entre nós e o comunismo não há solução intermédia possível” e que no presente momento a sorte do País, das nossas famílias e a nossa própria, depende do esforço ativo, contínuo e tenaz de cada um o perigo que nos ameaça está vencido. A Bem da Nação, O Governando Civil”.

Os hotéis, as pensões e as casas de dormidas tinham que indicar quem foram os utilizadores, se vinham acompanhados, em que dia chegaram ao estabelecimento e em que dia saíram do mesmo.

Na pensão do senhor João e da dona Amélia, ali na esquina junto do Café do Zé, em Oleiros,  pernoitavam os motoristas das camionetas, hospedavam-se professores e outros empregados que não eram da terra. O dono da pensão tinha que responder ao inquérito. 

A imprensa era controlada pelo visto prévio, vulgo “visada pela censura”, e as revistas do estrangeiro eram mandadas retirar das bancas. 

Mas se a limitação de direitos fundamentais era feita antes do processo eleitoral após o mesmo haveria que efetuar represálias contra quem não era a favor do regime autoritário!

Sua Excelência o Ministro do Interior encarrega-me do solicitar do V. Ex. se digne remeter com toda a possível urgência uma relação de todos os funcionários do Estado ou de organismos dele dependentes e também dos próprios funcionários municipais que durante a campanha eleitoral:

a) fizeram parte das Comissões de candidatura Norton de Matos; 

b) fizeram parte das mesas ou de Comissões organizador das Sessões da Oposição; 

c) foram oradores nessas sessões; 

d) publicaram artigos nos jornais ou concederam entrevistas contra a politica do atual regime; 

e) ou por qualquer outra forma se evidenciaram a favor da candidatura da Oposição ou contra a do Senhor Marechal Carmona. 

Da relação deverá constar, para cada um, além da localidade, o da função desempenhada, a menção concreta e discriminada de qual a circunstancia que lhe correspondo segundo as alíneas acima incluídas. … O GOVERNADOR CIVIL

Portugal era, em meados do século XX, um lugar de encantamento para uns e um lugar de despotismo para outros. 

Com o 25 de abril de 1974 Portugal libertou-se de uma ditadura e deu-se a viragem histórica da sociedade portuguesa com a independência das colónias e posterior adesão à União Europeia. 

A Revolução devolveu aos portugueses os direitos e liberdades fundamentais de um estado de direito e uma sociedade livre e democrática. 

Certo que com lacunas, como é exemplo: a inoperância dos tribunais, que demoram anos e anos a resolver as mais simples das ações; com o corre-corre legislativo que altera sistematicamente as leis em vigor, mesmo as acabadas de publicar tornando-se praticamente inteligíveis, quer a advogados, quer a magistrados, quanto mais o cidadão comum; com a pobreza da sua qualidade quase sempre de uma técnica jurídica imperfeita e labiríntica; com a oportunidade de “leis à la carte” ao sabor do momento político que criam embaraços ao célere funcionamento da justiça, dilações e facilitam a corrupção; tudo isto feito por falta de princípios e valores, sem estudos, sem solidez, sem harmonia  e sem visão. 

Mas, foi precisamente o 25 de abril que me permite nomear estes considerandos finais sem sofrer qualquer sanção ou prisão!


(1) Fraga, Luís Alves. A GUERRA COLONIAL (1961 – 1974), Universidade Autónoma de Lisboa, 2014.
Fotografia de Salazar na receção ao Corpo diplomático em Almourol, Vila Nova da Barquinha – Fonte Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 
(2) Em entrevista publicada no Diário de Notícias e n’O Século, a 14 de novembro de 1945.
(3) Ribeiro, Maria da Conceição. A Polícia Política do Estado Novo: 1926-1974, Lisboa, Editorial Estampa, 1995

Autor

Gosta de sopa de massa com couves e feijão. Gosta, cada vez mais, de coisas simples e da mãe natureza.