Quando há muitos anos fui ao Brasil, ia cheia de preconceitos, como a maioria dos portugueses. Os brasileiros são isto e aquilo, são fritos e cozidos e são de facto isso tudo e muito mais! São também crus, grelhados, assados, etc. porque não há uma pessoa igual a outra e é por isso que nunca podemos colocar tudo dentro de um saco. Isto vale para tudo, incluindo para as nacionalidades.
Temos em comum uma história nem sempre feliz e uma língua. Fomos nós que levámos o português para lá e é essa a língua que falam. Bem sei é outro sotaque e que há palavras diferentes, mas isso enriquece a língua e não deve ser ponto de discórdia. Numa simples questão de política da língua, se hoje somos a sexta língua materna mais falada no mundo, não é a nós que podemos agradecer, pois somos apenas 10 milhões. Ter uma língua que partilhamos com outros países tem de ser uma mais valia e nunca um problema. Não quero entrar aqui no acordo ortográfico que isso são outros quinhentos e o grande responsável por ele até foi meu orientador de Mestrado na Faculdade de Letras de Lisboa… Adiante.
Aqui há atrasado fui parar a um grupo de miúdas, na sua maioria brasileiras e por brincadeira pedi memes sobre portugueses. Foi a única vez que fiquei sem internet. Houve tantas respostas, que o meu servidor foi abaixo! Nessa altura também descobri que houve uma guerra de memes Portugal VS Brasil. Li muita coisa ofensiva e também as leio deste lado do atlântico a toda a hora. Ou seja, ainda há muita ferida por sarar.
Não sou apologista de reescrever a história porque muitos erros foram cometidos, mas sou de opinião que se deva contar a história toda. Se é um facto que descobrimos o Brasil, também o é que explorámos aquelas pessoas e todos os seus recursos naturais. E tal como aconteceu com outros impérios coloniais, fomos os responsáveis por anos de escravatura. Os primeiros escravos negros chegaram ao Brasil entre 1539 e 1542 e apenas a 13 de maio de 1888, a escravatura foi abolida oficialmente no país. Não podemos dourar a pílula.
Pois bem, numa tentativa de contar a história não contada destes escravos e de todos os que a partir deles lutaram para sobreviver, dois brasileiros lançaram duas obras bastante diferentes, mas ambas obrigatórias para quem quer saber mais e não se fica pelo que lhe dão.
Emicida vive no Brasil, Lucas Argel vive no Porto e os dois embarcaram na aventura de ir à procura das suas raízes. Como resultado, Emicida criou um documentário a partir de um concerto que deu no Theatro Municipal de São Paulo, em 2019, percorrendo a história da cultura negra no Brasil ao longo dos últimos 100 anos. O mesmo está na Netflix. O mesmo é amor.
Já Luca Argel lançou o álbum “Samba de Guerrilha” esta semana. “Este trabalho é uma viagem no tempo, onde conhecemos histórias e personagens do combate ao racismo, à escravidão e às desigualdades” e fala-nos da centenária história do samba, através, não só de música, mas também de narração, ilustração e poesia. É muito mais que um álbum, é uma enciclopédia falada, é a história que não reza a história.
Duas obras maravilhosas em jeito de homenagem que aconselho vivamente.