Geral

(Fazer) Viver a festa, lançar os foguetes e apanhar as canas

Em áudio, narrado pela autora.

Pensei bastante sobre este tema e dei várias voltas ao texto, com receio do lugar-comum: a pieguice. Pensei até se este tema e este conteúdo caberia na definição de Crónica num espaço como a RESINA. Resolvi arriscar, aqui vai

A Festa da Santa Margarida, é a celebração dos reencontros da família e dos amigos, é sempre o que espero encontrar, é sempre o que encontro. Tem sido sempre um lugar seguro para a alegria. Com alterações claro, que nada é imutável, por exemplo a mesa de casa da minha avó por estes dias já não tem comida à nossa espera, já não temos de acrescentar cadeiras da cozinha à mesa da sala, antes pelo contrário, já nos sobram cadeiras vazias, os maranhos são comprados quase sempre já feitos e as filhós chegam-nos compradas em sacos de plástico. Os almoços e os jantares somos nós que preparamos, ou marcamos. Estes últimos anos a casa cheirava apenas a lençóis lavados. Já não cheira a sopa de peixe com coentros nem a pão frito, nem a maranhos com hortelã, nem a café acabado de coar nem a arroz-doce com canela. É diferente, tão diferente do que já foi. É bom, mas já foi muito melhor.

As memórias da infância e da adolescência são sempre muito marcantes, e quando são felizes duram-nos para a vida toda. As que tenho daquele lugar, com as nossas pessoas são as melhores, já aqui escrevi várias vezes sobre este tema, mas não se esgotou, percebi desta vez uma outra perspetiva, que foi a possibilidade de ser vulnerável, e dessa possibilidade ser coletiva. Ali, nas ruas daquela vila em festa, o segundo domingo de agosto foi quase sempre de alegria, pontuado por algumas exceções ao longo dos últimos quarenta anos. (…caramba, que escrito fica pesado). As andanças, a música, as rodadas de copos que partilhamos sempre e as memórias que durariam todo o resto do ano até que voltássemos a criar novas memórias, novas camadas de alegria. Todas as minhas memórias deste lugar e deste espaço são muito inebriantes, é dali que me vêm as primeiras liberdades, as primeiras conquistas dessa liberdade individual, mas também das liberdades coletivas de sermos e de estarmos. 

Este ano foi ainda “mais diferente”, eu já antevia, sabia que seria assim, quando nos faltam pessoas, as de sempre, as que congregam, as que tomamos por garantidas, as que por infantilidade achamos que estarão sempre. Eu sabia que neste último ano somamos perdas muito grandes, muito fundadoras daquela alegria e daquele lugar e daquela festa.

Dançar na Praça, ao final da tarde e saber que o Tó Zé estaria ali a dançar connosco, com as suas “miúdas” e embevecido com a sua pequena Maria que nos mostrou a todos com a sua vivacidade e alegria que o momento era de festa. As crianças têm esta capacidade de se entregarem ao momento. Não saímos enquanto a música não terminou.

Brindamos a ti, a ambos. 

Mal cheguei ao arraial, senti a vossa falta, fui vendo todos os outros, uns aqui outros acolá, e durante o primeiro dia pensei sempre que tu ias chegar aos saltinhos, dois a dois, embalada num balancear só teu, com um sorriso, que nos abraçávamos e me dirias ao ouvido: – Que bom que vieste! Lembrei-me da última vez que cantamos e dançamos juntas a ver Jorge Palma, também ali, em Oleiros, foi dos últimos brindes que fizemos à vida, presencialmente. 

Olhei por cima do ombro várias vezes, sobressaltei-me outras tantas e fui para a entrada da capela ou para as traseiras sempre que pude: fugi! Éramos vários a vaguear por ali, por entre copos e música alta a tentar manter uma normalidade festiva, a sorrir como conseguíamos, a embalar a tristeza em abraços. 

Durante aqueles dias, andamos assim, a tentar disfarçar, com o rei nú no meio do arraial. Disfarçamos mal, e ainda bem. As conversas foram sendo superficiais e circunstanciais, de propósito, julgo eu, a medo, para não nos ferirmos uns aos outros. Em esforço coletivo, com sorrisos amarelos mal engendrados. Nalgumas trocas de olhares pude ver uma espécie de guião coletivo, de tentativa de simular um – Está tudo bem!, que mais a fundo se percebia que era fake.

No domingo à noite tenho a certeza de que todos os que vimos o fogo de artifício pensamos em ti, em vocês, foram duas perdas gigantes para uma vila tão pequena. Quando o “Imagine” começou a soar, para acompanhar o fogo de artifício, voltei a sentir que ias aparecer num rescaldo de um foguete, numa luz arqueada do céu, à procura do melhor lugar para ver o espetáculo. Aquele barulho ressoou forte, tão forte que quando volto aquele dia me arrepio.

Na segunda-feira, ao ver o António subir ao palco, para cantar, vi-te ali, a filmá-lo com os olhos brilhantes de orgulho. Foi assim que assisti: a resistir às lágrimas, a saber-te orgulhosa e a olhar o céu, como se olhar para cima impedisse ou retardasse as lágrimas. Não pude, Belisa, foi mais forte que eu, que todos os que te queremos. A vulnerabilidade tocou-nos a todos, varreu o arraial, varreu-nos. Saí apressada do arraial, pelas traseiras, quando regressei, nas escadas, estavam muitos agarrados uns aos outros numa incredulidade chorosa: a da tua falta. Foi um conforto bom, os abraços que demos uns aos outros, as mãos que passamos nas costas uns dos outros como que a amaciar a tua falta, mas nunca a tua ausência! Foi bom podermos partilhar essa vulnerabilidade juntos. Conseguimos fazer coexistir a tristeza e a nostalgia, com as tais memórias alegres, foi muito transformador. Conseguimos somar às várias camadas de Festa da Santa Margarida, a vulnerabilidade. Dali voltamos a brindar! Porque “Perder é um silêncio em coro” como a frase que dá título ao livro da minha amiga Joana Lopes

Ainda o António estava no palco, a agradecer a todos e a fazer corações com as mãos vi uma estrela cadente que se soltou devagar e escorreu até cair ali atrás do lado direito do palco.

Andaremos por muitos anos a apanhar as canas!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.