Escreveu PIMENTEL (1881)1, “A ribeira tem uma única ponte de madeira com três vãos, em sítio aprazível, a qual bem merecia ser de pedra.”
No inicio do século XX, pontes de pedra no atual concelho de Oleiros só existiam duas, ambas na freguesia de Álvaro. A construção da ponte de pedra da Torna, sobre a ribeira Grande, teve várias peripécias e, pelos seus sucessivos adiamentos e proteladas obras, foi motivo do sarcasmo das nossas gentes. Certo é que a construção teve inicio em 1909, vindo a pedra da pedreira junto da capela de Santa Margarida, mas o seu términus só ocorreu dezassete anos depois, em 1926, AZEVEDO (2016)2 … foi obra!
Melhor sorte teve a ponte da Carvalha, na Sertã, de igual modelo, tendo sido concluída em 1900, a obra demorou pouco mais de um ano.
Certo é que o aumento e facilidade das vias públicas, e dos meios de comunicação, foi sempre um assunto que reclamou atenções e cuidados das nossas gentes e dos nossos agentes políticos.
Mas Oleiros esteve sempre longe de tudo. Recordo que o primeiro automóvel que circulou nas nossas calçadas foi em 16 de janeiro de 1916, pois só nessa data a estrada de macadame, entre Oleiros e Sertã, ficou concluída.3
A ponte da Torna avoca-nos a lembrança dos nossos anteriores, a pesca, as trutas e os barbos ali presentes e as margens cobertas de salgueiros e amieiros. Recorda-nos, ainda, a grande azáfama e atividade da feira onde ecoavam os sonoros pregões dos comerciantes e os ásperos berros dos vendedores de banha da cobra, a confusão dos atos de comércio onde homens e mulheres se apinhavam bem como as mulheres a lavar roupa e a enxugar os lençóis brancos pousados nos arames esvoaçando. Para não falar naquilo que era de meter medo. Segundo a mitologia popular por muitas noites um avantajado homem sentado na ponte lavava os seus pés na ribeira ou a aparição de uma galinha à sua entrada, junto do cilindro, que ali deslembrado repousava. O animal fazia ali o seu espojadouro, provocando o medo a quem era obrigado a seguir aquele caminho.
Enigmática é, também, a sua toponímia, ponte da Torna!
– Donde surgiu este nome?
– Será que está ligado à célebre frase “torna-viagem”?
– Que é isso de voltar de uma viagem? Qual a sua génese?
“De torna-viagem se chamava antigamente aos vinhos generosos que, de Portugal exportados para o Brasil e não tendo lá encontrado colocação remuneradora, voltavam à pátria, onde as bocas e as narinas experimentadas neles surpreendiam considerável aumento das suas melhores e mais características virtudes, sabor e perfume. Por diversas formas se explicava esse facto singular, não sabendo eu, consumado pechote em assuntos enológicos, qual das explicações seria a verdadeira. O que sei, é que esses vinhos repatriados assumiam, no mercado, preços verdadeiramente fabulosos, e que as garrafas que deles ainda hoje restam nas frasqueiras de alguns ditosos sibaritas, consideradas como dignas de serem despejadas por Ganimedes nas copas de oiro dos banquetes olímpicos, só excecionalmente são desrolhadas.”4.
Dizem os entendidos que os cascos de vinho ao serem devolvidos do Brasil, porque não foram comercializados, ao passarem duas vezes nos trópicos ou no equador, submetidos a diversos climas, e significativas variações de temperatura, voltavam aperfeiçoados … apuravam!
Adiante …
É neste local de ablução, tornando para a Foz da Lontreira, que matuto o desvendar do porvir ou entretido com o presente, de ímpeto, volto ao ido.
Recordo uma tarde de invernia.
Chovia copiosamente. A semana fora basta em chuva. Os caudais da ribeira do Milrico, das Várzeas, do Bonjardim, engrossavam o caudal, agora enorme, da ribeira Grande, levando-a a desviar-se do seu leito natural e a submergir todos os campos aráveis adjacentes, numa correria desenfreada contra o tempo, em descenso, rumo incerto até beijar o rio Zêzere, situado a jusante.
Ao lado da ponte da Torna, e não ao meio – como aconselha a grande e salutar virtude ou prudência – não venha alguma árvore chofrar num dos pilares, vejo as terras da borda de água todas alagadas. No seu horizonte, a nascente e a poente, lobrigo as terras afamadas de fertilidade oleirense, os campos dos herdeiros da família Rebelo, com a sua levada e aguadouros mil que rentabilizavam a gestão dos solos e da água, propriedades que surgiam desde a Lameira e se perdiam até à foz da ribeira da Lontreira e Salina. Terras adubadas pelos detritos da água que formavam os então nateiros ou aluviões, responsáveis por uma magnífica produção agrícola: couves, nabos, milho, feijão, abóboras, etc. e pelo verdejar dos campos até ao Casal o sítio das aveleiras.
Ao passarem alguns troncos na corrente memoro o tráfego fluvial ancestral da madeira de pinho, “os toros”, que percorriam aquele caminho das águas e que os nossos ancestrais conduziam, com arte e engenho dos zorros das serras até à ribeira e dali até à Praia do Ribatejo. No final desta louca correria surgiam, já na foz do Zêzere, criaturas arregaçadas de gravato em pulso, outros com a sirga, que tiravam a toros do rio para o areal e deste para as serrações da família Manuel Vieira da Cruz & Filhos e Tomás da Cruz. Fábricas de madeira que tiveram grande importância no desenvolvimento dos povos, de onde agora escrevo, e cujos fumos das chaminés e os apitos eram símbolos de alento, trabalho e ganha-pão.
E foi o engenho do desenvolvimento, com a construção da barragem de Castelo de Bode, em 1950, que interrompeu todo este vaivém, esta torna-viagem, talvez tão primitivo como o homem.
Na ponte da Torna vem-me à lembrança a minha infância que é a idade de oiro de todo o ser humano, a minha mãe, o palco de amor e de ciúme, meadas e mexericos ali trazidos por quem aqui lavava a roupa, namoradas, contrastando muitas vezes, com atos de afeto de humanismo, em que a solidariedade e o apoio ao próximo, não eram palavras vãs, memórias que o próprio tempo teima em deixar perder ou desfazer.
Mas que bonito quadro cénico seria possível fazer trazendo à memória aquela humilde e passada gente.
A ribeira, essa via civilizacional que, ora em correria, ora em mansidão, nos acompanha na longa jornada de eras deverá ser vivificada e questionada tal e qual como as suas penumbras, as sombras das árvores vivas e fenecidas, de modo a transportar-nos para um passado ou futuro de cultura, de património material e imaterial, e para alguns dos momentos mais notáveis da construção da nossa vila dos olhos de água, certo que por vezes de lágrimas de tristeza mas mais vezes de alegre transpiração.
– Onde estarão agora aquelas sombras e porque se calaram aquelas pessoas?
– Seria possível tornar a vivificá-las? Debalde.
Grande parte das nossas árvores secaram, até a cerejeira que ali estava perene desapareceu …
Retirou-se o campo de futebol da Torna e surgiu um magnifico hotel. Porém, a natureza vai e vem, volve e torna, renasce agora com retoques de verde fresco que as almas que por ali vagueiam justapõem de espanto e carinho.
A vida é uma grande viagem e um colossal mistério!
1 AZEVEDO, Leonel. A ponte grande sobre a ribeira de Oleiros. Revista Cardo n.º 6, Os Amigos da Cardosa, Boletim Cultural e Informativo, 2016
2 Voz da Beira, Semanário Independente, n.º 216, Certã, 22 de janeiro de 1916
3 CASTRO, Eugénio de. CARTAS DE TORNA-VIAGEM. Empresa Internacional Editora. 1926-1927. Coimbra
Obs. A Fotografia é da capa desta revista.
Agradecimentos a Telma Veríssimo e Inês Martins