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Álvaro, as cinzas da memória

Era uma vez uma aldeia de xisto, linda, erguida no cimo de uma colina com apenas uma rua. De um lado e do outro a floresta. Lá ao fundo o rio Zézere. Há seis anos um fogo florestal cercou esta aldeia, chegou de todo o lado e 42 casas desta aldeia arderam.


É inimaginável a violência com que um incêndio florestal chega e queima tudo à sua volta. Neste caso, a aldeia que se erguia lá em cima viu-se sitiada e não havia forma de fugir ou diminuir a tragédia. Mas há quem não precise de usar a imaginação, os habitantes de Álvaro viveram tudo, basta relembrar aquele dia. São 49 os habitantes desta aldeia.


E é por isso que estou aqui, hoje, para dar a minha opinião sobre essas pessoas que têm de reviver esse dia todos os dias e ninguém faz nada para atenuar o seu sofrimento.


Adoro Álvaro, é um dos meus refúgios em qualquer altura do ano. No Verão vou tomar banho às águas quentes do Zêzere, no Inverno basta ir olhar para a paisagem do rio, descer a rua da aldeia de xisto ou acordar no meio do rio, agora que temos o Floating Alvaro ( uma casa barco) e as baterias ficam automaticamente recarregadas. O coração leva-me a Álvaro muitas vezes, só que desta vez levei um grupo de amigas comigo a descer a rua. O resultado foi conseguir ver de fora o que alguém que nunca viveu o inferno de um fogo florestal vê. Quem vive na zona do pinhal está habituado, é algo que sempre viveu e acaba por fazer parte de todos os seus verões, mas há quem não faça ideia (e ainda bem) e foram as reações delas que me deixaram a pensar.


Passaram seis anos desde que o incêndio chegou e queimou 42 casas, 4 delas de primeira habitação. Hoje, algumas casas já foram recuperadas, mas a verdade é que uma boa parte continua exatamente igual há seis anos. Sem portas, com os andares desfeitos, com mobília queimada e garrafas derretidas pelo calor, como que a convidar o visitante a entrar e a tirar uma foto.

Numa das casas consegue ver-se uma cama de ferro que derreteu com o calor e está metade do que resta no andar de cima e o resto da cama suspensa no ar. É impossível não ficar de boca aberta perante tal cenário e não imaginar a violência que levou àquele resultado, mas há mais casas com camas de ferro derretidas e portas abertas para observação livre.


Numa outra casa mais abaixo ainda se pode ver uma garrafeira ainda com as garrafas derretidas com a força do fogo.


No dia em que descemos a aldeia, havia vários habitantes a construir presépios para um concurso local e perante o espanto das pessoas que passavam, eles amavelmente explicaram o que foi passar por aquele dia e o que já fizeram para o ultrapassar.


Agora, a minha questão é:


Há seis anos sobreviveram, mas continuam a viver ali por isso têm de reviver esse dia para sempre, por isso ter de passar pelas questões dos turistas ou visitantes não seria de evitar? Será que não era preferível limpar aquelas casas e assim deixar que, pelo menos a curiosidade dos transeuntes deixasse de ser um gatilho para voltar à quele dia? Era o mínimo.


Jamais sugeriria que fossem os proprietários a fazer esta limpeza, bem basta tudo o que passaram, mas uma entidade que pudesse fazer isto. Ou até fechar as casas para impedir o olho curioso de escarafunchar este sofrimento, não seria boa ideia?


E atenção que acho importante reunir o que sobrou e abrir uma espécie de museu para memória futura. Como disse anteriormente, quem vive na zona do pinhal sabe o que a casa gasta, mas ver a reação das minhas amigas ao perceber o que é um fogo florestal é importante. O choque delas, a perturbação, basicamente perceber a violência que as pessoas passam cada vez que o fogo chega à porta; acho verdadeiramente importante para os de fora verem isto e perceberem a violência que foi e é, mas bolas, bem sei que o turista sai com uma história fixe para contar e uma boa foto para postar no Instagram, mas pensar nas pessoas que vivem ali e tentar reduzir o seu sofrimento não seria bem melhor?


A sério. Façam alguma coisa. É revoltante.

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Autor

Tradutora por habilitação, professora por profissão, viajante e curiosa pelo mundo por opção.