Em 1878 toda a vasta superfície do concelho de Oleiros era um longo trato de terreno inculto, formado na maior parte por cumeadas (linha de cumes de serras) desguarnecidas de toda e qualquer vegetação embora a meia encosta até ao vale existisse significativo arvoredo. Na vila existiam algumas plantações de videiras: “ … o terreno elevado, mui produtivo da videira, e vindo neste conhecimento os antigos, encheram de vinha todos os altos em volta da vila, que naquelas posturas se acham designadas”, posturas da Câmara de 20 de abril 1685 (PIMENTEL,1881).
Segundo o mesmo autor o pinheiro manso fora introduzido, mais tarde, no ano de 1755 a 1760, pela família Albuquerque: “… que semeou o primeiro pinhal regular em um pequeno monte no sítio da Carantonha… e, presentemente, segundo acham-se quase todos os montes que cercam Oleiros cobertos de pinheiros, que nascem espontaneamente, espalhando-se facilmente o penisco a grande distância, levado pelas asas, de que a natureza o proveio.”
Possuía o concelho, em 1878, o número de 9195 prédios rústicos com a média de 6,3 hectares por prédio. A população era de 16 habitantes por quilometro quadrado.
O solo propriamente cultivado ou arável só se encontrava na bacia hidrográfica da ribeira de Oleiros (ou da Sertã ou Ribeira Grande) ou junto dos inúmeros cursos de água que corriam pelos vales das serranias do concelho (BARROS, 1888).
Era um território duro para quem ali brotava para a vida, como seria impetuoso o caminho das serras e das pedras percorrido pelos nossos ancestrais.
Para suster e aproveitar as terras, que as águas da chuva transportavam em enxurros do alto das serras, costumavam fazer-se, nas ravinas escarpadas das mesmas, umas paredes de pedra solta, as chamadas calçadas (pequenas paredes ou suportes construídos para segurar a terra nas barrocas e junto das árvores em terrenos com declive), formando socalcos sucessivos, onde demoravam as águas e se depositavam os seus carrejos (sedimentos), formando uma colmatagem ou nateiro. (BARROS, 1888). Logo que esta camada ficava apta para ser cultivada, plantavam os nossos anteriores algumas árvores, castanheiros e oliveiras, algumas cepas de embarrado (videira plantada junto das árvores, para treparem por elas, entre elas a célebre videira do Callum), e destinavam alguns metros quadrados de terra sobrante para a cultura das hortaliças, da couve, do feijão e do milho que eram regados em declive pelas levadas e cursos de água uma vez que: “ .. a água, sendo abundante em volta da Vila, e mui necessária para as regas do milho e de outros frutos, é quase inteiramente abandonada. Não se conhece uma bomba, uma nora, uma roda movida pela corrente, o que seria passível em alguns sítios da ribeira, e nem ao menos uma roda de mão! Nunca ouvimos dizer que se fizessem em Oleiros uma mina, nem um poço, para se encontrar água ..” (PIMENTEL,1881).
Como sofreram os nossos antepassados com violência desta terra, e no angariar mantimentos para o pão nosso de cada dia, o básico de sobrevivência.
As terras circundantes aos cursos de água, pelo relevo e declive acentuado das propriedades rústicas eram áridas e estéreis, somente muitos braços, muitos filhos, alguns animais e muitos estrumes podiam concorrer para que elas dessem algum interesse ao paupérrimo povo.
Parafraseando Georges Bernanos: “O pobre prefere um copo de vinho a um pão, porque o estômago da miséria necessita mais de ilusões que de alimento.”
Não nos admiremos, pois, que a friúra do clima guiasse, logo de manhã e bem cedinho, os nossos antepassados ao “mata-bicho”. Um ímpeto preponderante dos nossos egrégios avós, e que o consumo de bebidas de alcoólicas, fosse apelante: “… principalmente de vinho … existindo cerca de trinta tavernas na vila, algumas chegam a vender, em dia do mercado, trinta almudes de vinho. Com efeito nos domingos e dias santos, em que a gente do termo vinha à vila, quase toda se retirava de tarde, mais ou menos embriagada …” (PIMENTEL,1881).
Certamente, seriam momentos de algum prazer para esquecer o ranger de dentes e recuperar do espírito pois o suor da semana era já amanhã!
Ou quiçá momentos de qualquer gratidão pelas rezas ou benzeduras ou aos santos da vila que conceberam o milagre de curar os seus familiares ou os seus animais às recorrentes epidemias. Ah ! Mas sempre a fé e a natureza no seu diário!
Aqueles momentos de convívio seriam os únicos espetáculos ofertados à idealização e ao sentimento popular, por mais rude que fosse a sua existência.
“Não exporta o concelho senão algum azeite, e este pouco; havendo freguesias que nem para seu consumo o produzem. N’outro tempo havia muito vinho; mas fraco, e, além de baratíssimo, nenhum saía para fora do concelho, mas nele era consumido. … O vinho era fraco, porque misturavam as uvas maduras com as verdes, nem lhe faziam preparo algum; mas, sendo as uvas maduras e de vinha velha, delas saia um vinho delicioso, que se conservava muitos anos”. (PIMENTEL,1881).
Portanto, naqueles tempos o azeite, o milho, a castanha eram as suas principais culturas.
A vinha de embarrado ficava à volta dos ribeiros e das ribeiras e era plantada nas calçadas (ladeira com acentuada inclinação) por vezes com o aconchego de singelas e exíguas latadas.
Também existia alguma vinha baixa nos campos agrícolas, mas a sua extensão cultural era muito restrita. A plantação junto das rochas ficava onerosa em termos de mão de obra e raramente “pegava” pela dureza da pedra e do gelo.
Nos campos as cepas eram altas, com poda de vara e empa de pinheiro (vara ou estaca que serve de suporte às videiras), à semelhança do que, se usa no rio Douro, disposta horizontalmente com dois tutores (pau de madeira cravada no solo).
Estas vinhas eram bem estrumadas com caruma, mato triturado e apodrecido nos caminhos e dos pátios.
Como vimos, nas Posturas de 1685 já faziam alusão às videiras, os inquéritos paroquiais de 1758 igualmente. No ano de 1878 foram gerados 2254 hectolitros (225400 litros) de vinho, produção significativa para a época.
O vinho em Oleiros era feito de bica aberta. Tinha pouco corpo, era descorado, insipido e levemente acidificado. Conservava-se com uma forte aguardentação sentida, logo ao primeiro golo, no paladar do provador, como ainda hoje acontece, pois azeda facilmente.
Diziam os técnicos que era mal fabricado. Mas o povo era tão fiel aos seus hábitos e às suas crenças, tão apegado aos seus usos e aos seus costumes, que manteve a tradição ancestral na maneira de fazer o seu vinho. Para beber no verão um bom vinho, da colheita do ano anterior, só se consegue se o dito contiver aditiva aguardente, salvo raras exceções.
Três processos se adotavam para a feitura do vinho: o de bica aberta de feitoria (dar prova) e de meia feitoria. Esmagadas as uvas, nos lagares, pelos pés dos homens, o mosto, no caso do fabrico de bica aberta, era logo transportado para as pipas com algum bagulho ou folhelho, mas sem cardaços (engaços) e ali mexidos durante dias. No caso da feitoria completa, toda a massa, mosto e folhelho, fica a fermentar no lagar recolhendo-se o mosto depois de terminada a fermentação. A meia feitoria obtém-se dando feitoria ao vinho tinto e misturando-o depois, nas pipas, com o vinho branco feito de bica aberta, ou, vice-versa, dando feitoria ao vinho branco e misturando-o depois com o vinho tinto de bica aberta. Terminada a fervura os batoques das pipas são barrados com barro branco (DIAS, 1966).
Os lagares são eram feitos de lajes de pedra e eram detentores dos célebres engenhos de vara.
A aguardente dos nossos antigos não era só feita dos restos das uvas e do vinho (das borras), como de diversos frutos como sejam as cerejas e as ameixas.
Quanto ao medronho. Em 1881 é referido “… nem produz a bacia de Oleiros medronheiros, em razão da sua frialdade”, mas por outro lado, ou seja, no lado norte virado para a Vila de Álvaro e para o Zêzere a encosta de Alvelos detinha “ …castanheiros colossais , e tão velhos que não se lhes podia aproveitar já a madeira; carvalhos , azereiros, medronheiros e outras arvores e arbustos.” (PIMENTEL, 1881).
Os frutos do medronheiro eram colhidos à medida que iam amadurecendo e seguidamente esfacelados e confinados em dornas ou balseiros e mexidos por muitos dias com um pau. Ainda me lembro deste rito ancestral na Corgalta e dos melros sempre de volta dos medronhos maduros nas encostas de xisto.
Acabada a fermentação, a massa ou “papa” era levada ao alambique para a destilação. Se não houvesse alambique disponível ou mão de obra vaga era preciso acatar a oportunidade, tapavam-se as dornas da massa com um tampão de madeira que assim aguardam todo o tempo que for preciso até ao momento de ser destilada.
Quando o proprietário não queria, ou não podia fazer a apanha dos medronhos vendia ou arrendava a colheita, umas vezes por dinheiro e outras em contrapartida de litros de aguardente pela entrega deste fruto a terceiros.
Ora o medronho faz parte do nosso património material estando bem cotado no campo nacional quer na variedade de aguardente quer na de licor.
O mesmo não de pode dizer do “nosso parreirinho meio incolor”. Mas temos uma honrosa exceção, a do vinho “Callum”. Casta onde estamos a dar cartas. Recentemente, encontrei uma citação do Séc XIX, que poderá referir-se a esta casta: “Além do vinho maduro cria-se em Oleiros … algum pouco vinho verde de enforcado (ou embarrado a amieiros, salgueiros, castanheiros, choupos, sobreiros e azinheiras) que não é de inferior qualidade” (LAPA, 1879).
Eis um contributo útil e necessário para os meus contemporâneos e para os vindouros consabido que a memória é uma deusa rigorosa e austera que não consente contorções nem permite que lhe desfalquem o seu secular património.
Fontes
PIMENTEL, João Maria Pereira d’Amaral. Memórias da vila de Oleiros. 1881
BARROS, Alfredo. Relatório acerca dos serviços Phylloxericos em 1887 na circumscripção do sul. Imprensa Nacional. 1888
LAPA, João. Technologia rural; ou, Artes chimicas: agrícolas e flores florestais. Tipografia da academia. 1879
DIAS, Jaime Lopes Dias. Etnografia da Beira. Editorial Minerva. 1966