Crónica Geral

E as saudades de viajar? Sintoma de privação pequeno-burguesa

Viajar é das melhores coisas do (meu) mundo. Tenho uma predisposição que se ativa de forma automática para as viagens. Gosto do ir, de planear, de sair . Gosto da caixa de borboletas que se destapa dentro de mim, quando se pronuncia a palavra v-i-a-j-a-r, assim como o melhor da festa é esperar pela festa, parte do encanto de viajar é planear, escolher o destino, começar a materializar, às vezes envolve leituras antecipadas, sobre o que ver, o que comer, onde ficar, outras vezes, nem por isso, é só ir, marcar e ir.

Gosto mais de experiências, do que de possuir objetos, sim, cabem aqui aqueles que se adquirem nas viagens, os souvenirs, os ímans para colar no frigorifico, os postais, etc, para além de me levantar uma série de questões, quem viaja compra-os para si próprio, compra para amigos e família?! Não me faz sentido. Mas isto era um parêntesis, não era para ser um parágrafo, já foi.

Dizia que gosto das viagens, da experiência de ir, da que fica depois, muito depois de regressar. Não tenho paciência para os “dicotomistas” das viagens: Paris ou Londres? Nova Iorque ou Pitões das Junias? Praia ou campo? Cidade cosmopolita ou hotel com “pulseira de tudo incluído”? (mesmo avessa à última opção, agora ia). Tudo, quero tudo, quero ir a todo o lado, cada local é único, não vale pelas comparações, vale pela experiência que conseguimos retirar dele, pelas pessoas, pelas vivências, por um sem número que coisas que não precisam de validações comparadas. Gosto quando um amigo me diz, quando fores a Paris, ou a Madrid, ou a Sortelha, tens que ir ao “sítio x”, disto gosto, quando alguém que nos conhece, nos recomenda um local, um restaurante, porque acha que vamos gostar, ou nos vamos surpreender. Fujo a sete pés, mais pés houvesse, mais fugia das viagens de grupo, já fiz algumas por decorrência profissional, não me dou bem: os meninos de trás seguram o bibe das meninas da frente, não dá. As agendas que não são conciliáveis, os interesses menos ainda, um sarilho, para mim.

Do que gosto mesmo, mesmo, e tenho muitas saudades é de ficar sentada numa esplanada a ver a vida daquele lugar a acontecer, sem pressas, sem horário, ali, como se tivesse comprado um bilhete de cinema, sem saber qual é o filme. Depois interessa-me sempre mais saber como vivem as pessoas daquele lugar, do que ver sítios que alguém preparou para os turistas. Na realidade do que eu não gosto é de me sentir turista. Sim, duas vezes a Paris, não fui nenhuma ao Museu do Louvre, mas calma, fui mais do que uma vez ao Museu de Orsay. Gostos não se discutem. Gosto mesmo de me perder pelas ruas, perco-me várias vezes, faço de propósito, para depois me encontrar (não esquecer que nem sempre houve/há internet e telefones espertos). Ando muitas vezes de nariz no ar, quando outros andam com ele nos pés, e vice versa, sou desalinhada. No Cambodja, quando todos entraram para ver o templo de Angkor Wat, eu deixei-me ficar, a contemplar uma árvore rodeada de tuk tuks, e uns miúdos que brincavam por ali.

Depois, gosto de sentir os cheios, cada local tem um cheiro, um aroma próprio, consigo recordá-los muitos anos depois, e posso mesmo voltar lá, aquele sítio, através do despertar de uma memória olfativa.

Aqui há uns meses, fui num tirinho de Oleiros a S. Miguel, nos Açores, bastou uma chávena de chá da Gorreana com jasmim, e eu voltei ali, à imensidão dos verdes recortados diretamente em cima dos azuis, com as vacas contemplativas e mandrionas, nas pastagens.

Tenho um sonho: um dia viajar sem mala, não levar nada e não trazer nada!

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.