No início de um setembro da década de oitenta, quando medíamos o tempo em binómios aulas-férias e sabíamos que faltava mais um mês, estávamos ali, no Mosteiro para mais uma festa anual, todos na casa da tia Maria Luísa e do tio António, havia muito que fazer, os tios faziam parte da Comissão de Festas, era preciso enfeitar o arraial e as ruas, a Igreja e o adro.
Já durante o verão se tinham cortado milhares de centímetros de papel em forma de flores, naquele dia faziam-se cola, misturando farinha e água para revestir mastros, com grinaldas destas flores, cada ruela tinha uma cor, a dos tios era branca, e nós de mãozinhas ainda pequenas também colávamos, recordo que a maioria dos trabalhos de colagem acontecia na parte de baixo do palco onde à noite haveria de cantar o José Malhoa, os cartazes diziam que o baile seria abrilhantado por ele e por um tocador de acordeão. Por ali andávamos rua abaixo, rua acima, faltava sempre um pincel, uma lata de tinta, para misturar a farinha e água, que íamos buscar a casa dos tios.
A meio da manhã vimos chegar uma carrinha castanha, em vez de tinta polida como todos os carros, aquela carrinha era igual aos móveis da cozinha da cave da tia, chamavam-lhe fórmica, atrelada vinha uma rulote, não me lembro de ter visto uma carrinha igual a uma porta de um móvel de cozinha, a matrícula era amarela, em vez de preta com os números em relevo branco, e lá dentro vinham muitos, cabelos muito louros quase brancos, muito desgadelhados, alguém disse quando saíram da carrinha: – Aqueles cabelos não hão-de conhecer pente nem escova! Eram muitos, crescidos e miúdos, vestiam-se de forma diferente, eram muito coloridos. Com eles vinha um cão amarelo, cujo pelo era igual ao cabelo dos donos, no ar.
Um dos miúdos veio ter connosco, eu e o meu irmão tínhamos um pacote de bolachas e já cansados das colagens das flores, vagueávamos pelo arraial. Lembro-me do exotismo dele, muito diferente de nós, vinha descalço, vestia uns calções e uma camisola de alças, as cores eram indecifráveis, tanto podia ser laranja, como roxo, ou mesmo cor-de-rosa. Aproximou-se, dissemos-lhe: -Olá! Ele respondeu: -Yá. Estendi-lhe o pacote das bolachas, tirou três, riu-se muito, comeu as três de uma só vez, correu para a fonte, logo ali abaixo do arraial, empoleirou-se no beiral da fonte e bebeu água, como se fosse a primeira vez. O meu irmão trepou também e imitou-o a beber água, começaram a atirar água um ao outro, claramente coisas de rapazes, lembro-me de ter pensado, parecia um ritual de iniciação. Voltámos ao arraial, ele foi ter com os dele, disseram coisas que não entendemos, e quando ele voltou na nossa direcção a mãe, talvez fosse a mãe, disse coisas, só percebi: – ….Maíque, deu-lhe um beijo na boca e ele correu de volta para nós, a senhora acenou-nos e nós acenamos-lhe de volta.
O sino da Igreja já tinha badalado as vezes suficientes para sabermos que eram horas de almoço, tentamos dizer-lhe que tínhamos que ir, que estavam à nossa espera, ele sorria e acenava com a cabeça. Seguiu-nos até casa, chegamos os três, andava tudo numa azáfama, a mesa já estava posta na “loja” era assim que chamavam à cave, três mesas agarradas umas às outras, nos dias de festa, abria-se a porta que dava para a rua principal, nos outros entrava-se pelo lado de dentro, do pátio. A minha prima perguntou quem era o nosso amigo, eu e o meu irmão encolhemos os ombros, já lhe tínhamos dito os nossos nomes, ele respondia Maíque e apontava para o próprio peito. Ela perguntou-lhe: – És de cá? Ele sorriu e inclinou a cabeça. A minha prima gritou: – Mãe, os do Vale têm por cá família este ano? Não se falou mais nisso, ele sentou-se e almoçou connosco. Comeu de tudo com vontade e satisfação.
A tarde passou rápido, subimos e descemos ao arraial, o miúdo voltou ao pé da família e regressou para nós aos saltinhos, espalhando borralho do chão. A carrinha tinha ficado estacionada nas traseiras da Igreja, tinha agora uns panos esticados, uma mesa e umas cadeiras ali fora. O cão despenteado veio com ele, percebi que se chamava Ape, fazia uma série de habilidades, deitava-se, rebolava, fingia-se de morto.
Ao final da tarde, os três juntos, antes de regressarmos a casa, passamos na taberna, alguém nos ofereceu um Fá, nunca podíamos comer gelados de gelo, os pais não deixavam, os de leite eram melhores, diziam sempre! Soube-nos pela vida aquele gelo com sabor a fruta.
Voltámos a casa já o sol nos dava pelo joelho. Tomámos banho de regador, o tio António tinha engendrado um sistema de duche que fazia inveja aos atuais spas, a água acumulava-se num depósito de folha, que estava ao sol todo o dia, quando puxávamos a alavanca do regador suspenso, caía-nos uma chuva reflectida nos últimos raios de sol, que projetava vários arco-iris em cima das nossas cabeças, era o apogeu do dia, o Maíque também estava fascinado, olhava à volta e soltava gargalhadas sonoras. No final do duche vestiu uns calções, uma camisola e uns chinelos do meu irmão.
O Maíque ficou para jantar, ninguém veio à sua procura, sentou-se connosco, estava feliz, os olhos brilhavam, comeu de tudo, e olhem que os pratos menos que cheios para a Tia Maria Luísa, não eram pratos… Depois do jantar, levantou-se da mesa, e fugiu, literalmente. Quando os adultos o procuraram ele não estava. Quando a minha prima se preparava para ir ver dele à porta principal, veio alguém dizer que o miúdo estrangeiro abalara a correr e que já estava ao pé dos pais. Demorámos ainda a sair para a festa, desta vez íamos todos, miúdos e graúdos. Sabíamos que iriamos ver rapazolas a subir ao pau ensebado para tentar alcançar o bacalhau, também era certo que haveria de ser lançado um balão de fogo e que haveria atuação do rancho e o conjunto para o baile.
Quando chegamos ao arraial, as luzes já estavam apagadas, havia uns focos apontados para o palco, as pessoas organizavam-se em famílias, havia quem levasse bancos desdobráveis, e já havia música de fundo, e ali começou um espetáculo acrobático, uma família e um cão, lançavam fogo, faziam movimentos arriscados, o miúdo despenteado e o seu cão fizeram no final as delícias de todos num pequeno número de indicações dadas numa língua que nós não percebíamos, o cão saltitava nas duas patas traseiras, rebolava e no fim fingia-se de morto. Os aplausos encheram o arraial.
As luzes acenderam-se e o Maíque veio novamente ter connosco, descalço e com uns calções que brilhavam, levou-nos à sua carrinha, a mãe ainda vestida com as roupas estranhas com que tinha atuado, entregou ao meu irmão um saco com os calções, a camisola e os chinelos, sorriu e disse: – Obligado! O Maíque trazia as mãos cheias de rebuçados, todos colados uns aos outros que partilhou connosco.
Sabemos hoje, que naquele dia conhecemos a primeira família hippie, O miúdo talvez se chamasse Mike, e o cão talvez fosse Up.






