Fotografia de Anabela Bento Rua Padre António de Andrade, tirada numa madrugada de um dia da Festa de Santa Margarida, há alguns anos atrás.
Ainda esta semana partilhava com um grupo de amigos que acho que somos uns sortudos. A maior parte de nós tem teto, tem comida, tem água, tem saúde, tem a quem amar e é amado. Quanta da população mundial não tem estas condições básicas, que damos todos os dias como adquiridas.
Somos uns sortudos. E os oleirenses ainda mais. Temos a sorte de ter crescido em Oleiros…
Há um provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. E eu concordo. Foi em Oleiros que, em criança, tantas pessoas diferentes me ensinaram tanto:
– a grandeza e humildade que temos que ter sempre no sorriso e na simpatia para e com o outro, em qualquer circunstância – ensinou-mo a minha querida avó materna, e quem a conheceu sabe certamente que não havia sorriso mais doce na terra;
– o método e a disciplina, mas sempre com ternura associada – com a Dª Gracinda, professora de muitos de nós, e de muitos dos nossos pais;
– a generosidade da partilha (parece um pleonasmo e é de propósito!) – com a Ilda Garcia, a mãe do Sérgio Martins. As compotas da Ilda são, definitivamente, as melhores que comi na vida. Em tudo o que fazia a Ilda punha amor e por isso também os seus cozinhados eram tão bons;
– a capacidade de aturar crianças e de as acolher (também) no lugar de trabalho (não havendo fronteiras nisto, nos anos 70 não havia necessidade de sistemas de gestão da conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal) – com o Sr. Nuno da Loja Chaveira, que nos deixava brincar às escondidas por entre feijão e tecidos. Tanto era o barulho e confusão que às vezes achava que bastava, mas rapidamente nos presenteava com um rebuçado dos frascos que rodavam em cima do balcão. “Vá, toma lá! Queres de mentol ou de fruta?”;
– a importância da diplomacia – o diplomata mais sereno e discreto que alguma vez conhecerei foi o “Zé do Café” – nunca lhe vi uma “palavra menos boa” (adoro esta expressão!) com quem quer que seja ou um pequeno laivo de menor educação com ninguém. Poderia dar cursos e formações a políticos e gestores o “Zé do Café”, tinha uma sabedoria ímpar neste aspeto;
– o valor de uma ferramenta por perto quando é necessário – e sim, estou mesmo a falar de ferramentas, parafusos, apetrechos que só existiam na loja do Zé António, a loja das ferragens. Foi ele que me ensinou como deveria fazer algumas “bricolages” (digo-o sempre com um ligeiro sotaque francês, já que também bebi um pouco dessa cultura em criança), explicando-me qual a melhor ferramenta e utensílios a utilizar. O gosto, esse já o meu pai mo tinha passado na sua pequena oficina, logo atrás da melhor (risos) sapataria da zona;
– a coragem da fé – com a Irmã Manuela, que a tantas perguntas tinha de me responder num frenesim de inquietudes típicas de uma adolescente, nos grupos de crisma do início das tardes de sábado. Do mesmo grupo fazia parte o Zé António, e vejam o bom trabalho que fez com ele, é hoje o padre mais “ecuménico” que conheço, e tenho a certeza que foi naquele grupo que todo esse amor por Cristo, no outro, se iniciou;
– o valor da Liberdade – mesmo que de uma bola se tratasse e sempre que os GNR’s da rua recolhiam a bola de futebol com que todos jogávamos na rua (eu, Lena do Café, Rui e Vasco dos Correios – que serão os meus eternos “bizinhos” – Carla e Paulo das Ferragens, Teresa e Beta do Barbeiro, e outros tantos que se juntavam a nós. Diziam que ”a bola agora está presa” e prometíamos sempre não jogar mais na rua, porque “poderíamos partir os vidros das montras”, mas assim que a bola saía do posto da GNR voltávamos ao mesmo (esta não é uma boa lição para os mais pequenos, mas…era de facto assim!);
– a relevância da economia circular – sempre que levava os restos de comida aos meus avós, logo no andar abaixo, e que se tornavam no almoço do outro dia das suas galinhas, que depois nos presenteavam com ovos deliciosos;
– que nada é tão grave quanto parece e que digestões difíceis se conseguem fazer – mesmo que engulamos borrachas verdes “pelikan”, o corpo funciona na perfeição e traça o seu destino (e esta vão entender os amigos e colegas de escola Raquel Guerra, Manuel Tavares e Luis Damas (risos!))…
Foi em Oleiros que fiz pela primeira vez voluntariado; foi em Oleiros que senti as primeiras borboletas no estômago por um rapaz, que me deixou uma cassete dos “Depeche Mode” – e os mais novos não vão entender de que estou a falar quando falo de uma cassete, mas perguntem aos vossos pais e avós – antes de se ir embora, depois de umas férias de verão…; foi na ribeira de Oleiros que aprendi a nadar, entre calhandras e risos, no Açude da Lameira; foi em Oleiros que aprendi a reciclar o lixo nos meus primeiros piqueniques; foi em Oleiros que aprendi a andar de bicicleta, descendo livremente pequenas ribanceiras, quase sem travar …
E é a Oleiros que sempre volto. Tendo o meu lar, ainda hoje digo que vou a casa quando vou a Oleiros. Dizem que “casa é onde nos sentimos bem”. Eu tenho várias “casas”, mas Oleiros será sempre a primeira, e será provavelmente a última. É em Oleiros, de todos os sítios que conheço, aquele onde durmo melhor (talvez a sensação de ninho tenha aqui algum peso). É em Oleiros que respiro pelas duas narinas (há lá cheiro melhor que o desta terra?) e que me sinto abençoada sempre que boio no meio do rio em Álvaro e o sino começa a tocar. Costumo dizer que se estiver mais em baixo, basta-me ir a Oleiros e recebo muitos: “estás tão bonita!”, mesmo que tenha muitos quilos a mais. Em Oleiros sou a Bela, a Belinha, a Bélita. A filha da Rufina e a neta do Rufino…
Quando viajo para Oleiros e quase sempre que chego à “Zona do Pinhal”, paro um pouco e sinto a zona, cheiro o pinhal e eucaliptal – e sobre gestão florestal ou a falta desta apesar de todos os incêndios, todos os anos, falaremos noutra altura – e sinto um pouco este como o “meu” território. Na última vez que por aí parei, alguém tinha denominado aquela estrada de terra batida como “Rua da Liberdade”. Sorri. Entrei no carro e na rádio passava o “Enjoy the Silence” dos Depeche Mode. Marejaram-se-me os olhos…
Esta semana nasceu mais um dos “Descendentes do Rufino” (nome carinhoso que damos ao grupo de primos da família), o Miguel. Também ele vai conhecer Oleiros em breve e se vai apaixonar por esta terra. Como todos nós! Também Oleiros o vai abraçar. Como a todos nós nos abraça.
E somos uns sortudos!