Crónica

Sobre a inutilidade do útil

Estamos completamente imersos na importância da utilidade.

Todos os dias nos entram pela casa, com teorias que, levadas à risca, nos farão prosperar enquanto país, devidamente fundamentadas com gráficos e folhas excel. E todas, mas todas se referem à utilidade, sempre a utilidade.

Durante o confinamento, uma publicação Inglesa fez um inquérito sobre as profissões menos necessárias em alturas de pandemia. Os artistas surgiam em segundo lugar. Numa altura em que, provavelmente as pessoas nunca ouviram tanta música, e assistiram a horas a fio de séries e filmes, o artista surge como profissão dispensável em situações de pandemia.

Talvez as pessoas tenham necessidade de atribuir uma maior importância às necessidades que nos permitem sobreviver, e fazer funcionar os órgãos vitais, e depois pensar naquilo que nos torna humanos, no entanto, (e as doenças mentais que nos levam ao desespero e ao suicídio provam-no de forma clara) está muito longe de ser suficiente para o ser humano, garantir somente as necessidades do corpo, descurando as da alma. Por isso tanta gente põe termo à vida, mesmo garantindo as condições necessárias a uma vida material confortável.

Há uma dificuldade em perceber que existir e viver estão longe de ser sinónimos, muitas das vezes a primeira é a antítese da segunda, morremos quando apenas existimos, mesmo existindo oficialmente como entes vivos.

Aqui há uns tempos, falava com uma pessoa conhecida, que me dizia que não tinha interesse em que o filho estudasse música, se não fosse seguir essa área.

Tentei demonstrar-lhe que a vida é muito mais do que praticar uma atividade e auferir uma remuneração, e que essa visão meramente utilitária levava invariavelmente a uma vida vazia e desprovida de sentido. Para lhe explicar a minha teoria, propus-lhe que ele imaginasse abolir da sua vida, tudo o que não tivesse um propósito utilitário claro.

Concordámos que não poderíamos comer para lá do que era estritamente essencial ao funcionamento das funções vitais, não precisaríamos de mais nenhuma bebida, a não ser água. Falei-lhe do amor, disse-me que era essencial para manter a espécie, discordei. Apenas o sexo é essencial à manutenção da espécie, e obviamente, apenas aquele que tem como fim único a procriação.

Ambos concluímos que é impossível criar uma vida com sentido, partindo dos pressupostos utilitários e estólidos que todos os dias nos tentam impingir.

Arrisco-me a dizer que se queremos saber se uma coisa é essencial à nossa vida ou não, só temos que fazer um exercício. Se os senhores do utilitarismo acharem que é essencial, é porque é acessório, se pura e simplesmente a ignorarem, è porque dela depende a nossa condição humana, como a arte, o amor, o prazer, no fundo, aquilo a que chamamos viver, e que tem a capacidade tão humana, de transcender a mera existência.

Autor

Gosta de tocar piano, ler e escrever. Nasceu na Sertã e mora actualmente em Gaia.