Chegámos ao dia mais lindo de todos os dias, o dia em que celebramos o 25 de Abril e a Revolução dos Cravos! Este é o dia em que celebramos a Liberdade, os Capitães de Abril que rumaram a Lisboa em chaimites e o final de anos de repressão e ditadura. Ao peito levamos cravos vermelhos, uma cor viva para colocar um ponto final em anos de cinzentismo. Mas será que foi mesmo assim?
Há uns dias, estava a ouvir o podcast da Blitz, Posto Emissor, com o Ivan Lins. Ivan disse ter vindo a Portugal pela primeira vez em 1981 para actuar no Avante e comentou que o que mais estranhou, foi ver tanta gente vestida de preto, não se via gente vestida com roupas coloridas e isso fez-lhe confusão. Essa frase fez-me recuar no tempo e reflectir.
De facto, eu cresci no meio de muita gente vestida de preto, principalmente mulheres. A minha avó sempre vestiu de preto, pois era viúva. Andámos anos a pedir-lhe que usasse outras cores, mas ela dizia que por respeito ao meu avô só podia usar aquela cor. Foi só ao fim de muitos anos é que lá começou a usar umas blusas pretas e brancas, mas isso foi o máximo que conseguimos dela.
Quase todas as minhas vizinhas eram viúvas e vestiam de preto. O preto reinava, apesar dos anos de cinzentismo terem terminado. Era difícil apagar da mente das pessoas 41 anos de escuridão, 41 anos de imposições. Se não, vejamos:
Em Portugal, o Estado Novo esforçou-se por conservar a mulher no seu posto tradicional, como mãe, dona-de-casa e em quase tudo submissa ao marido e praticamente não tinha direitos. Se se tratasse de uma mulher casada, os direitos eram exercidos pelo chefe de família, que por lei era o homem. A mulher casada não tinha direito de voto, não tinha possibilidade de exercer nenhum cargo político e mesmo dentro da família, a mulher não tinha os mesmos direitos na educação dos filhos. Também por lei, o marido podia abrir a correspondência da mulher.
Em relação ao trabalho, a mulher deparava-se frequentemente com grandes limitações: A magistratura, a diplomacia e a política eram apenas alguns dos exemplos de sectores profissionais a que a mulher não podia aceder. E as profissões que poderia exercer também vinham com limitações.
Por exemplo, as enfermeiras não podiam casar, as professoras não podiam casar com qualquer pessoa: tinham que pedir autorização para casar e saía em Diário da República a autorização para ela casar com o senhor fulano de tal. Além disso, naquela altura estava escrito em decreto-lei que uma professora só podia casar com um homem que tivesse um vencimento superior ao dela.
De um modo geral, uma mulher casada não podia ir para o estrangeiro sem autorização do marido e não podia trabalhar sem autorização do mesmo. O marido podia chegar a uma empresa ou estabelecimento público e dizer: eu não autorizo a minha esposa a trabalhar. E ela tinha que vir embora, tinha que ser despedida.
Quanto ao divórcio, claro que era proibido, devido a um acordo estabelecido com a Igreja Católica na Concordata de 1944. Todas as crianças nascidas de uma nova relação, ou seja, posterior ao primeiro casamento, eram consideradas ilegítimas.
No interior do país, havia um gravíssimo problema de alcoolismo, mas a mulher tinha de aguentar e calar perante todo este cenário. As mulheres passavam do pai para o marido, sem serem donas do seu nariz. E mesmo após a morte dos últimos, a sociedade impunha o tal respeito pelo morto que as fazia vestir de preto até morrerem.
De facto, ainda me lembro muito bem desse Portugal vestido de preto de que Ivan Lins falava.
Felizmente, o vermelho dos cravos trouxe-nos, com os anos, todas as outras cores; mas que a memória não apague esses tempos, como vem vindo a pagar tudo o resto.
Assim seja.