Quando comecei a dar aulas ao primeiro ciclo, passei mal. Nunca imaginei que as coisas tivessem mudado tanto desde a altura em que eu tinha feito a escola primária. O respeito pelo professor tinha-se perdido algures pelo caminho.
Onde teria ficado, perguntava-me.
Cresci com muitas histórias. Os meus avós não foram à escola. Não podiam, eram pobres e os pobres não estudavam. No tempo dos meus pais as coisas mudaram um pouco, mas a escola nessa altura não era um sítio agradável.
A minha avó tirou o meu tio da escola quando ele, após chegar a casa muitas vezes com altos na cabeça, chegou com a cabeça toda em ferida. Tinha levado tanta porrada que a cabeça era um alto negro sem fim. A minha avó que não era Rijo, mas que era mais rija que nós todos juntos, no dia seguinte tirou-o da escola, ele estava na terceira classe. Antes de o tirar da escola disse ao professor que preferia ter um filho burro, mas inteiro a ter um filho com estudos, mas incapacitado para a vida.
O meu tio acabou por tirar a terceira classe no ensino nocturno e a quarta classe na tropa, ambas com distinção.
Já a minha madrinha levava 56 reguadas de cada vez que dava erros ortográficos. Chegou a ficar escondida a meio do caminho para a escola durante três dias até ser apanhada. Tinha medo da escola e não queria levar mais sovas. Acabou por levar da minha avó e do professor dessa vez, mas pelo menos durante aqueles três dias, a palmatória não viu a mão dela.
Na minha escola primária ainda houve reguadas, mesa dos burros e canadas na cabeça. Eu já nasci após Abril de 1974, mas os hábitos ainda lá estavam.
Longe de mim querer apontar o dedo a alguém, isso é o que menos interessa aqui. “Naquele tempo era assim” como todos aqueles com quem falei disseram. E também não quero com isto dizer que todos os professores dessa altura eram maus, com certeza que os devia haver bons, eu, por exemplo, tive uma dessas durante uma boa parte da minha escola primária, mas não podemos esquecer estas histórias. Elas fazem parte das nossas histórias familiares, pelo menos das minhas e foram reais.
Os miúdos eram humilhados, levavam tareia, era normal. A minha avó ousou reagir, mas isso era raro. De um modo geral, as pessoas comiam a calavam. Os professores eram autoridade máxima e ai de quem questionasse fosse o que fosse.
Pergunto-me se o respeito perdido é a resposta a anos de violência, abusos de poder e prepotência, porque era assim que as coisas funcionavam antes do 25 de Abril.
De facto, não tenho a resposta para essa pergunta e hoje, que estou do outro lado e dou aulas na primária, sei que os meus alunos consideram a escola um local seguro, confortável, onde tenho a certeza de que se sentem bem e isso deixa-me muito feliz.
E sei, acima de tudo que ninguém no seu perfeito juízo devia conseguir repetir a frase “naquele tempo é que era bom”.
Não dar a mão à palmatória
