Geral

In memoriam

“Viver sem amigos é morrer sem testemunhas. Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham que somos, que fizemos, que amamos, que perseguimos determinados sonhos e que fomos perseguidos por este ou aquele sofrimento. E fazem-no não com a superficialidade que, na maior parte das vezes, é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha. O olhar do amigo é uma âncora. Alguns amigos tornam-nos herdeiros de um lugar, outros de uma morada, outros de uma razão pela qual viver. Certos amigos deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível que lhes serviu de motivo para a demanda. Há amigos que iniciam-nos na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à geografia de cidades, ao segredo que ilumina a penumbra do templo, à bondade de Deus.” (Cardeal D. José Tolentino Mendonça)

Nas exéquias do meu compadre Tó Zé estive de sobremaneira atento à homilia do Pe Luís, pároco de Oleiros. 

O meu “compadre Tó Zé” deixou para mim e para o Pe Luís, na sua história de vida, ser um exemplo das mais belas páginas das memórias contemporâneas de Oleiros.

Um autêntico resineiro que percorreu este caminho de vida apressado tal como Nossa Senhora (NS). Faleceu no dia 15 de agosto, dia de NS da Conceição, padroeira daquela linda e nossa terra. Sabemos que a grande maioria dos títulos atribuídos a NS tem a sua origem na veneração popular. NS da Conceição ou da Assunção, que ascendeu ao céu , são qualificações dizem respeito à mesma pessoa que é a Virgem Maria,  Mãe de Jesus Cristo, e que desde tempos ancestrais vem sendo venerada pelos Oleirenses.

O Pe Luís referiu que NS foi apressada “saiu a correr quando soube que a sua prima Isabel estava grávida.” Dizemos que Maria saiu a correr com o sentido de presença e de ajuda. Um exemplo que o Tó Ze nos deu na vida e na morte. 

Sempre apressado para o socorro, de bens e pessoas. Que Grande comandante tiveram os Bombeiros Voluntários de Oleiros!

Registo o testemunho do atual comandante: “perdi o meu mestre”!

Sempre sensível às causas humanitárias, juntou a alegria de viver à solidariedade como chefe dos escuteiros. 

Sempre disponível, mesmo em tempo de pandemia, para fazer a festa da sua Santa predileta, Santa Margarida. 

Memoro a pessoa de cultura e cidadão do mundo, por todos conhecido pela sua capacidade de ação a nível cultural e associativo sempre em prol das instituições concelhias. Uns dias foi dirigente, noutros cantor, por vezes comediante… mas sempre voluntário organizador. Mil disfarces para um homem onde a arte e o carinho pelo próximo se confundiram como soldado da paz, homem do teatro e tenor de cantigas da Universidade Senior. 

Retornar à nossa terra é para mim sempre um ato reconstitutivo de energia, de fartar o órgão pulmão, um resfolgar de caminho e um catalisador inexplicável! 

Sentir o pulsar do peito, o saborear da paisagem imutável da Ribeira Grande, passando pela Sra. das Candeias, Foz da Lontreira, Sesmarias, Fonte das Freiras e o Poço da taverna da Tia Maria Lopes, sua querida mãe, onde “caiu o sarilho que ia matando o meu pai”, são sítios  que ficaram para sempre na minha memória. Recordo com nostalgia que nas festas de Santa Margarida era o Poço o local de visita obrigatória para alguns peregrinos (as), pois na festa não se podia conversar, soe que era muito pó e bastante vozearia! 

Ali, tínhamos paz, … eram momentos únicos da vida de um vivente, e que hoje creio, certamente, vives no céu!

Que prazer foi deixar arfar o meu peito, na constatação de uma esfera humana transcendental na adega de São Bento da “porta aberta”, que com cuidado especial, denodo e carinho, cuidavas e de onde jorrava uma bela pinga que partilhavas com gosto incomum com os teus melhores amigos e comparsas. 

Que conforto sentir esse correr de vida do vinho Callum, saindo fervilhando da pipa de castanho, sinal genuíno desse povo, bem fraterno, resiliente e rijo como tu! Ah ! com especial elevo e carinho cuidavas daquele néctar , numa atmosfera nunca vista, numa roda anual rítmica, incerta e finita como a nossa vida! 

Naquela adega dotada de chão térreo, para onde todos desceremos “lembra-te ao homem que és pó e em pó te hás de tornar”, decorada na parede, com pormenores rurais e ancestrais, com copos afetuosos e limpos, iguais ao sítio para onde estás e um dia também nós subiremos! 

Quão agradável era ouvir-te falar das terras da sexta parte a que os nossos ancestrais chamavam de Sesmarias, terra que tanto amaste. 

Recordarei os arrepios de sabores, no degustar da sua sopa “à lavrador” onde o caldo não parava de crescer na boca, qual “chefe” sem igual na arte de culinária e do escutismo!

E, depois, e depois … momentos, pequenos e pormenores humanistas, majestosamente privados de abertura da tua casa aos amigos e aos compadres que agora ficam mais pobres, por vezes com ausências fortuitas, sempre com rápido regresso, fruto de uma muito arreigada solidariedade e religiosidade, escapadelas do dever de acudir ao dever e ao próximo.

Parafraseando o Pe Luís “Tudo deixamos quando descemos à terra, mas deixamos aqui ficar o bem que fizemos”.

Juro que serei uma das tuas boas testemunhas desta tua passagem, deste teu caminho de vida.

Compadre Tó-Zé, se Deus quiser, havemos de voltar a cantar contigo o nosso hino “Filinto Elisio”!

Autor

Gosta de sopa de massa com couves e feijão. Gosta, cada vez mais, de coisas simples e da mãe natureza.