Geral

A (i)legitimidade da violência, versus a sua legitimação

Se o título desta crónica vos parece um trocadilho, ide em paz, eu própria preferiria dobrar vários quilos de lençóis de elásticos, do que perder tempo com estas reflexões.

Sim, é sobre a agressão de um homem a outro, na cerimónia dos Óscares…

Conseguimos estabelecer que a violência é toda ela e a todo o tempo,  sempre ilegítima, ou ainda temos dúvidas?

Vou deixar claro que não é nem sobre humor, não vou escrever sobre os limites do próprio humor, vou só pensar em voz alta, ou escrever algumas reflexões. Mas antes deixo num parêntesis uma declaração pessoal de intenções, que por ser pouco importante fica assim recolhida num segundo plano. (Sou bastante elástica quanto aos “limites” do humor, há dias em que vivem em mim  todas as virgens ofendidas, e outros em que vivem todas as mulheres devassas, o quero dizer com isto é que tenho oscilações permeáveis ao nível do humor, há dias que me riu com tudo e dias há em que quase nada me faz rir…dito isto esclareço que o humor, como  forma de expressão e como liberdade não deve ter limites).

Agora que os que tinham lençóis de elásticos para dobrar já devem ter ido, seguimos:

Proponho olhar e pensar sobre o que se passou, na cerimónia da entrega dos Óscares, mas sem romance, sem heróis  e sem príncipes… o que eu vi ali não é sobre humor, nem sem os seus supostos “limites” é sobre os limites e a tolerância à violência. É sobre a propagação de um sentimento justiceiro desajustado.
Sobre um homem que, agindo em “defesa da honra da sua mulher”, julgando-a ofendida, levanta-se do seu lugar e agride um outro homem que terá feito uma piada de mau gosto. Há sempre alternativas à agressão, a quem se sente agredido, seja física seja verbalmente. Como os lençóis de elásticos, cada um tem a sua permeabilidade à agressão. Não andamos todos indignados com o tipo da Rússia que invadiu um Estado soberano utilizando a força e a agressão?

O que ali vejo é uma toxicidade masculina exacerbada, um homem que saiu em defesa da sua mulher, e vou só um bocadinho mais longe ainda (última chamada para irem dobrar os lençóis de elásticos): O que é que isto diz da própria mulher? eu leio uma inferiorização e uma diminuição. Se por perto de mim, estando eu frágil ou debilitada numa condição física qualquer, o meu companheiro resolvesse agir violentamente sobre o outro, eu sentir-me-ia diminuída. Não quero um príncipe a cavalo com a espada em riste, e os punhos prontos a desferir golpes em minha defesa, e muito menos quero alguém que se aproprie da violência como forma de atuar para resolver uma ofensa. Não estou disponível para tal, não educo para isto.

A justiça pelas próprias mãos, o olho por olho e o dente pelo dente de tão cavernosos não deveriam ver a luz. Há formas de mostrar que não se concorda, há mecanismos legais para nos opormos àquilo que nos ofende, há o direito à indignação, mas a violência nunca tem legitimidade própria.

E o agredido, nem uma palavra sobre ele, ou estava mesmo a pedi-las?! Cuidado que este caminho pode não ter retorno, pode ser uma viagem sem regresso. Esta é a linha que conduz os agressores, que agem sobre o manto mais ou menos sagrado do amor!

E agora sobre os que ali estavam sentados, festivamente vestidos, talvez até inebriados entre as suas vaidades e os possíveis aditivos químicos, ou naturais- sabem que sou pela liberdade individual, sempre que não colida com a colectiva- e assistiram impávidos e mais ou menos serenos à agressão de um homem a outro? E ali resolveram continuar numa senda the show must go on, abjeta e para meu espanto, algures durante o espectáculo ainda aplaudiram de pé o autor da agressão? Sobre estes, nada, nem uma palavra? Será esticar muito o elástico se nos pudéssemos comparar àquela plateia e nos imaginássemos a aplaudir de pé o tal tipo da Rússia, seria tão diferente assim?

Quando se assiste, sem nada fazer, sem indignação, legitima-se!

Para terminar as perguntas: O perigo dos fenómenos grupais a sobreporem-se ao sentido crítico e ao arbítrio individual, à análise do que está certo e do que não está. Como uma manada que corre desgovernada. Corre, porquê?… Porque os outros todos correm!  

Autor

É inquieta, gosta de azuis, de estórias, de sons, de lugares, de pessoas com o coração no sítio certo, de ir e de regressar, de olhares e de afetos.